Parece que Lenine
dizia que os bígamos têm o merecido castigo de terem duas sogras. Há
alguma actualidade política no comentário. Porque, olhando para a Europa
à nossa volta, é difícil evitar o sentimento que toda a gente vive numa
espécie de bigamia política. Há o velho casamento com os nossos Estados
e o muito mais recente casamento com a União Europeia. Não sou
moralista e não quero pregar nada. Mas é difícil não reconhecer que, a
par de particulares prazeres e benefícios, a bigamia política traz
consigo alguns problemas. Notá-los, por mais que isso custe a entrar em
algumas cabeças, não é um sinistro sintoma de “anti-europeísmo”. É só
tentar ver mais claramente o que se passa à nossa volta.
O essencial prende-se
com a vetusta noção de soberania. Dir-se-á que, particularmente no
mundo actual, se trata em grande medida de uma pura ficção. Tudo se
encontra tão ligado a tudo que nenhum país, por mais poderoso que seja, é
inteiramente soberano. Perfeitamente de acordo. Até iria mais longe.
Num mundo ideal imaginado, o soberanismo não apresenta virtudes
transcendentes irrecusáveis e a defesa de uma “política patriótica e de
esquerda” (ou de direita) não deve provocar êxtases imoderados. Há, no
entanto, duas coisas a ter em conta. A totalidade das nossas
instituições, de tudo o que oferece coerência à nossa sociedade,
comporta uma dimensão ficcional notória. O facto de as instituições, se
tudo correr bem, suscitarem em nós sentimentos de crença, indispensáveis
para termos alguma confiança no funcionamento decente da sociedade, não
contradita essa tal ficcionalidade: anda de mãos dadas com ela. Mas, é
verdade, este ponto é puramente teórico e, no limite, pode ser saltado.
Não se passa assim
com um outro aspecto, que possui uma natureza essencialmente pragmática.
A soberania é tradicionalmente apresentada como possuindo duas facetas:
uma externa e outra interna. A primeira significa a independência dos
Estados uns em relação aos outros. A segunda, para falar sem grande
rigor, a autoridade de cada Estado face ao seu próprio povo, resultando
do facto de o soberano o representar. Acontece que, como vários bons e
velhos espíritos notaram, a perda, ou a desagregação, da soberania
externa, por mais ficcional que esta seja, acarreta tendencialmente a
perda, ou a desagregação, da soberania interna. Se olharmos para a
Europa à nossa volta, não é isto mesmo que se observa?
Não são apenas as
relações entre os Estados no interior da União Europeia que, apesar de
sucessivas e sanguíneas proclamações em sentido contrário, se degradam e
sugerem um movimento centrífugo difícil de contrariar. O caso – muito
particular, é verdade – do Reino Unido é apenas o exemplo mais notório e
está longe de ser o único. Para utilizar os termos de um livro de uma
historiadora inglesa, Linda Colley, que em mais do que uma obra se
dedicou à análise da construção da identidade britânica, aos actos de
união sucedem-se actos de desunião.
Mais profundamente,
no interior de cada Estado, esse mesmo movimento de repulsão começa a
adquirir proporções inéditas. Ficando apenas pelos exemplos mais óbvios,
olhe-se para a Catalunha ou, embora seja diferente, para a Escócia.
Dir-se-á que tudo isso vem de longe, de muito longe, e que é uma suma
injustiça atribuir responsabilidades à União Europeia no capítulo. Não
sendo de modo algum especialista da matéria, permito-me discordar. Essas
coisas vêm de longe, mas a bigamia política em que vivemos acentua-as
substancialmente. A perda da soberania externa, por mais ficcional que
esta seja, mina de forma decisiva a soberania interna dos Estados.
Atrevo-me até a pensar que o Brexit, e isso independentemente das razões
dos seus mais radicais defensores, poderá ter o efeito de reforçar a
relação entre as várias nações que compõem o Reino Unido (incluindo a
Escócia).
Outro efeito da perda
da soberania externa é o aparecimento, no interior de cada Estado, de
forças políticas radicais, de extrema-direita e de extrema-esquerda.
Também elas são sinal de uma desagregação da soberania interna, na
medida em que agem contra os princípios fundamentais a partir dos quais
pensamos a nossa relação com o Estado. Mais uma vez, certamente que o
fenómeno está longe de ser recente, e nem é preciso dar exemplos. E sem
dúvida que os actuais fluxos migratórios contribuem poderosamente para
esta situação. Mas a questão verdadeiramente importante é que, agora, o
alegre florecimento do radicalismo, que, no caso de alguns partidos
socialistas, contamina a esquerda democrática, como se verifica com o
Labour inglês e com parte do Partido Socialista português, pode
legitimamente ser visto como resultado da perda da soberania interna
resultante do actual quadro da União Europeia. Não é a primeira vez que
uma construção política levada a cabo para erradicar um mal tem o efeito
perverso de o estimular.
A acabar. Nesta
história de bigamia, quem são as duas sogras de Lenine? A primeira, a do
casamento europeu, é a da irrealidade que nos faz desatender ao
concreto das coisas e nos faz perder de vista efectivos, por precários
que sejam, laços de união no interior de cada Estado. A segunda, a do
casamento nacional, aquela que nos obriga a procurar identidades cada
vez mais fechadas e circunscritas a particularidades nacionais. Nenhuma
delas nos torna a vida fácil. Mas se calhar não há vida fácil neste
mundo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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