BLOG ORLANDO TAMBOSI
No centenário de sua morte, Ruy Barbosa deve inspirar a luta por um país que, conforme as palavras desse gigante republicano, acredite ‘no poder da razão e da verdade’. Editorial do Estadão:
Quis
o destino que o centenário da morte do pai maior da República fosse
celebrado em meio ao tremor do maior atentado a essa mesma República
desde a ditadura. Não há emblema maior do choque entre as forças
republicanas e antirrepublicanas que o busto de Ruy Barbosa marretado
por vândalos no Supremo Tribunal Federal.
Ruy
sentiu nos ombros a ameaça da lei da força contra a força da lei. Além
da violência à democracia e ao direito a partir de fora, sofreu na pele
sua corrosão por dentro: a Justiça, tardia e parcial; a política,
definida por Ruy como “a arte de gerir o Estado segundo princípios
definidos, regras morais, leis escritas ou tradições respeitáveis”,
abastardada pela “politicalha” – que, para Ruy, é “o envenenamento
crônico dos povos negligentes e viciosos pela contaminação de parasitas
inexoráveis”.
Ruy
viu lucrarem com a desordem os demagogos, que, tendo violado as leis,
faltado aos deveres, perdido a estima pública, viveram de “romancear
revoluções”. “Vejo os depositários da ordem respirarem deliciosamente na
agitação, animando-a, promovendo-a, propagando-a, e sinto empolarem-se,
cada vez mais acirradas, as paixões políticas. (...) Vejo a política
tender de dia em dia mais à subdivisão, ao personalismo, ao espírito de
grupo”, escreveu Ruy.
A
primeira lição de Ruy – a “mais poderosa máquina cerebral do nosso
país”, na definição de Joaquim Nabuco, “a única luz que alumia” nas
“trevas que caíram sobre o Brasil”, conforme d. Pedro II – é a lucidez.
Mas seu célebre desabafo – “de tanto ver triunfar as nulidades, de tanto
ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver
agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus...” – é tanto mais pungente
porque nele insuflou não o desânimo, mas a luta.
Uma
mente realista não animada pela paixão idealista cai na apatia. Um
coração idealista não esclarecido por um olhar realista esvai-se em
quimeras. No curriculum vitae de Ruy, realismo e idealismo se fundem.
Assim ele o lapidou em sua cripta: “Estremeceu a pátria, viveu no
trabalho e não perdeu o ideal”. Sua proverbial polimatia servia a esse
ideal: “Creio (...) que o governo do povo pelo povo tem a base da sua
legitimidade na cultura da inteligência nacional pelo desenvolvimento
nacional do ensino; (...) creio na tribuna sem fúrias e na imprensa sem
restrições, porque creio no poder da razão e da verdade; creio na
moderação e na tolerância, no progresso e na tradição, no respeito e na
disciplina, na impotência fatal dos incompetentes e no valor insuprível
das capacidades”.
Pudesse
eleger um monumento a si, disse, seria uma ferramenta de trabalho
subscrita pelas palavras do apóstolo Paulo: “Trabalhei mais que todos”.
Seu labor talhou a abolição da escravatura e a Constituição republicana –
o regime federativo, a eleição direta, o habeas corpus, a
responsabilidade orçamentária, o controle de constitucionalidade das
leis e os direitos sociais.
Forjado
o corpo da República, Ruy o animou com o espírito democrático. “A
sensação de força, de bravura e eletricidade moral era unânime”,
testemunhou Drummond em suas memórias de infância da campanha civilista
de Ruy à Presidência da República, que contou com apoio entusiasmado
deste jornal, contra a plataforma militarista de Hermes da Fonseca. Ruy,
na definição do poeta mineiro, “representou o melhor, o mais puro e
desinteressado pensamento do homem da rua, desencantado da engrenagem
política montada no país e esperançoso (utopicamente) de erigir um
governo civil inspirado na justiça, na liberdade, na representação
autêntica, na virtude”. Como profetizou Ruy a um correligionário em sua
campanha utópica, sabendo que seria derrotado, “perderemos, mas o
princípio da resistência civil se salvará”. Com efeito, disse Drummond,
“de 1910 a 1914 o Brasil teve dois presidentes: um de fato e outro de
consciência”.
Desde
então há duas repúblicas: uma, a da desigualdade, da corrupção, do
arbítrio, do populismo e do patrimonialismo; outra, a da consciência
cívica, cujo emblema maior é o busto de Ruy Barbosa – que resistiu aos
inimigos do Brasil no 8 de Janeiro e que evoca o melhor deste país.
Postado há 5 days ago por Orlando Tambosi
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