Filme é retrato honesto e delicado das alegrias e dores que vêm com uma vocação. João Pereira Coutinho para a FSP:
1.
O
diretor Cecil B. DeMille sempre foi implacável com as crianças. Eu
teria uns 6 ou 7 anos quando assisti na tela a "Os Dez Mandamentos", a
segunda versão do diretor, com Charlton Heston transportando as tábuas
da lei e dividindo o mar Vermelho.
Foi
o meu primeiro filme. Foi o meu primeiro terror. Uma sequência da
história, em particular, explica esse terror. Acontece quando a morte
desce sobre o Egito para levar todos os primogênitos.
Quem
diria, pensava Little Couto na escuridão da sala, que a morte era
assim: um nevoeiro denso que se alastra como um miasma imparável.
Ainda
hoje, 40 anos depois, tenho um certo temor pelo nevoeiro, o que não
deixa de ser irônico: a cidade onde escolhi viver amanhece quase todos
os dias sob um manto gris. Freud, como sempre, explica.
Sammy Fabelman, alter-ego de Spielberg em "Os Fabelmans",
também tem terrores para contar depois de uma experiência com DeMille.
Mas, no caso dele, esse terror se converte em imitação, a origem de todo
processo criativo: depois de assistir a "The Greatest Show on Earth", a
criança tenta reencenar em casa o acidente de trem do filme e captá-lo
com uma câmera de 8mm.
É
o princípio da sua paixão. É o princípio da sua perdição, porque "Os
Fabelmans" não é, apenas, uma mera declaração de amor ao cinema. Quando o
hobby deixa de ser hobby, o cinema é também uma fonte de angústias
vitalícias.
Como
lhe explica o tio-avô Boris, um extraordinário papel de Judd Hirsch, a
arte é uma amante exigente, que rivaliza com outras lealdades mundanas,
como a família.
Mas
a arte transporta também outro preço: ela revela o que estava oculto na
"vida normal". E essas revelações nem sempre são apaziguadoras.
No
filme, isso ganha contornos literais quando o jovem Sam se confronta
com o segredo da mãe através das suas filmagens. O que era invisível aos
seus olhos torna-se dolorosamente transparente através da lente de uma
câmera.
Nos
últimos anos, vários diretores têm regressado à infância para
reconstruir as suas educações sentimentais. Paolo Sorrentino fez isso em
"A Mão de Deus". Kenneth Branagh também, em "Belfast".
E
Pedro Almodóvar, com "Dor e Glória", navega nas mesmas águas que
Spielberg, mostrando como as nossas infelicidades podem ser, ao mesmo
tempo, a matéria preciosa de uma redenção através do ato criativo.
"Os
Fabelmans", não sendo uma obra-prima como o filme de Almodóvar, é um
retrato honesto e delicado das alegrias e das dores que vêm com uma
vocação. E ainda têm um final de gênio que faria a inveja de Almodóvar.
Pedir mais talvez fosse pedir demais.
2.
Leitores fiéis me perguntam: o que você achou de "Tár",
Little Couto? Entendo a curiosidade: escrevo com frequência (e
insistência) sobre a "cultura de cancelamento". O filme de Todd Field
coloca esse fenômeno no centro da narrativa, cartografando com inegável
rigor formal a queda da regente de orquestra Lydia Tár, acusada de
abusos sexuais sobre jovens musicistas.
Lamento.
Essa é a parte menos interessante do filme, confesso, e a mais óbvia
também: a sequência de que todos falam, na Juilliard School, quando
Lydia desce o pau sobre um aluno que não gosta de Bach porque o
compositor era branco, cis e misógino, me parece forçada.
Aliás,
creio mesmo que metade do ruído sobre o filme só se explica porque Todd
Field escolheu, como "predadora sexual" (para usar essa expressão
cafona), uma mulher lésbica. Há cabeças que não aguentam tanta
ambiguidade.
O
melhor de "Tár" está na figura de Lydia, tal como Cate Blanchett
brilhantemente a construiu, embora esse nem sequer seja o seu nome
verdadeiro, saberemos depois. Lydia Tár é uma criação erudita, diria
mesmo um clichê da alta cultura, ainda que sobre alicerces sólidos:
quando a vemos, caída em desgraça, admirando em lágrimas as velhas
videocassetes com as lições apaixonantes de Leonard Bernstein, seu
mentor, entendemos que o amor pela arte é genuíno.
A
tragédia de Lydia já foi bem diagnosticada pelos gregos. Não, não é
"hubris", esse excesso de autoconfiança que leva o agente a desafiar o
destino implacável; é, antes, excesso de "filotimia", o fascínio pelo
poder e pelo status que acaba corrompendo a alma humana, sobretudo
quando os alcançamos.
É
por isso que o final, longe de ser enigmático e pessimista, me parece
transparente e até otimista. Poder começar do zero, ou do menos que
zero, às vezes é uma bênção.
Postado há 5 days ago por Orlando Tambosi
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