BLOG ORLANDO TAMBOSI
A vida imita a arte: como em O Alienista, as medidas do STF contra a desinformação podem fazer com que sejamos todos presos. André Marsiglia Santos para a Crusoé:
Na
ficção machadiana O Alienista, um médico muito respeitado em sua cidade
se decide a estudar a loucura, recolhendo a cubículos de um sanatório
chamado Casa Verde todos os que, segundo sua avaliação, eram doidos. O
problema é que o médico via loucura em tudo; todos lhe pareciam loucos.
No
conto, a Câmara de Vereadores, em nome da ciência, submeteu-se ao
doutor, mas fez a ressalva de que em hipótese alguma seus membros
poderiam ser levados ao sanatório. Não demorou muito e, exceto os
vereadores, não sobrou ninguém solto na cidade. A Casa Verde passou a
ser o mundo. Desolado, o médico foi convencido de que ele próprio é que
deveria se recolher ao sanatório.
A
história, de fato, mostra que o conceito de loucura pode ser um tanto
complexo e escorregadio para encaixar as pessoas na simplista fórmula
“louco/são”. Em geral, quem ambiciona olhar o mundo com tamanha
severidade e, ao mesmo tempo, singeleza merece mais estar na Casa Verde
do que dizendo aos outros o que fazer. O mesmo se pode dizer dos
conceitos de “verdade” e “mentira”, aplicados com fúria e estreiteza, em
pleno 2023, pelos poderes da República, especialmente pelo STF, para
distinguir conteúdos que representam a verdade dos que representam a
mentira e são chamados de fake news.
Há
algum tempo venho insistindo que as fake news devem ser entendidas como
“conteúdos anônimos fraudulentos”, jamais como sinônimo de “mentira”. A
mentira faz parte do universo discursivo; a fraude, sobretudo anônima,
não. Se o conceito que proponho fosse tomado como critério para exame
dos casos, não seria possível, por exemplo, o Judiciário se valer de
decisões liminares, sem contraditório, como tanto tem feito o ministro
Alexandre de Moraes. Seria mais demorado o trâmite, mas evitaríamos que
um ministro do STF cometesse censura, e a credibilidade da corte seria
preservada.
Também
não seria possível travar uma batalha do “bem” contra o “mal”, como
proposto pelo ministro Luís Roberto Barroso, pois uma batalha pressupõe
algo bem diverso de justiça. Acredito que batalhas contra o mal são
cabíveis em contos de fada, que servem para enganar crianças. No mundo
adulto e real, se acreditarmos que somos o “bem” e que o “mal” pode ser
localizado em algo complexo como as fake news e em pessoas, como seus
propagadores, estaremos perto de sair recolhendo qualquer um à Casa
Verde do conto machadiano.
No
entanto, não creio que este meu conceito de fake news será adotado. Se
fosse, impediria que Executivo, Legislativo e Judiciário se unissem em
torno do imenso poder de controlar o discurso alheio do jeito que bem
entenderem, pois mentira pode ser tudo e tudo pode ser mentira. O STF
escolheu suas armas, e elas não são as da melhor técnica jurídica.
Enquanto
isso, o Legislativo, de forma humilhante, prepara no atropelo uma lei
servil, feita sob medida para o desejo do STF, sem debate com a
sociedade. Nesta última semana, parlamentares afirmaram que aprovarão
para muito breve um projeto sobre fake news que espelhe a visão dos
ministros da corte, com a ressalva de que os parlamentares serão
poupados do alcance da própria lei que criaram. Repetindo o enredo do
conto, nosso Congresso oferece a cabeça de quem se expressa em uma
bandeja ao STF e tira seu corpo fora. Não é incrível como a vida imita a
arte?
Há,
porém, diferenças entre a crônica da vida real e a obra ficcional, e é
preciso alertar o leitor: no mundo real, a chance de o médico se
recolher à Casa Verde é nenhuma. Muito mais provável que você e eu o
sejamos. Outra diferença é que, se aquela história foi contada por
Machado de Assis, esta é contada por um tal André Marsiglia. Não se pode
querer tudo, amigo leitor. Se a história do mundo é uma repetição
incansável dos mesmos enredos, quem os relata sempre dá conta de os
piorar um pouquinho.
Postado há 3 days ago por Orlando Tambosi
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