Demétrio Magnoli
Folha
“Metaforicamente falando, a Nicarágua parece uma igrejinha distante onde há um sacerdote que comete excessos e que todos reprovam. A Venezuela lembra uma arquidiocese de média importância cujo funcionamento é digno de certas críticas. Cuba… é o Vaticano, cuja santidade e dogma são inquestionáveis.”
Esta descrição das atitudes da esquerda latino-americana, publicada no site 1948 – Declaração Universal dos Direitos Humanos, é do cientista político cubano Armando Chaguaceda. Ela ajuda a entender tanto o tardio distanciamento do governo Lula em relação à ditadura de Ortega quanto sua natureza incompleta.
LONGE DO SOCIALISMO – Ortega, o sacerdote da paróquia, renunciou há tempos ao “socialismo”. Seu regime manteve laços íntimos com o FMI, cerca-se de um cortejo de empresários espertos e o próprio ditador aliou-se à Capitol Ministries, organização político-evangélica americana que entrou no Brasil pela mão de Bolsonaro.
O PSOL desistiu do regime nicaraguense – mas, claro, continua a rezar no altar do Vaticano tropical. Já o PT opera em outro compasso, recusando-se a romper com o tirano nicaraguense.
Ortega não conhece limites. Sua investida mais recente, a cassação da nacionalidade de mais de 300 opositores, inclusive vários antigos camaradas de armas da Revolução Nicaraguense, constitui infração direta da Declaração de 1948, que proíbe converter cidadãos em apátridas.
ONDA DE INDIGNAÇÃO – O ato extremo provocou uma onda de indignação, expressa no documento de 54 países que pede “pressão máxima” sobre o regime. O chileno Boric ofereceu cidadania aos opositores nicaraguenses, um gesto imitado pelo argentino Fernández e pelo colombiano Petro.
Há diferenças relevantes. Boric personifica uma esquerda que aprendeu o valor da democracia: ele utiliza a palavra ditadura até mesmo para definir o Vaticano castrista. Já Fernández e Petro modulam suas sentenças de acordo com a hierarquia teológica da esquerda.
Para eles, Cuba é exceção absoluta: a coagulação terrena de um ideal mítico. Por isso, a ruptura de ambos com Ortega não implica um repúdio geral do autoritarismo de esquerda.
DITADURAS REPULSIVAS – São duas lógicas distintas. Boric mantém coerência com o princípio de que ditaduras de direita ou esquerda são igualmente repulsivas. Fernández e Petro guiam-se por outro princípio: a adesão ao “socialismo”, entendido como controle estatal da economia e ferrenho antiamericanismo.
As ditaduras de esquerda fiéis ao dogma figuram como parceiros numa jornada histórica – e, portanto, permanecem imunes à crítica. Democracia, sob tal ótica, é bem menos valioso que ideologia.
Em tese, o PT se enquadraria nesta segunda lógica. Dias atrás, o dirigente petista Alberto Cantalice qualificou Ortega, Maduro e Díaz-Canel como ditadores, levou um pito dos burocratas partidários e ajoelhou no milho, desculpando-se pela sacrílega inclusão de Cuba na sentença condenatória. Lula, entretanto, vacila até mesmo sobre o infame sacerdote de aldeia.
PIOR QUE ORTEGA – “Bolsonaro é mil vezes pior que Ortega”, pontificou Lula na campanha eleitoral, fabricando uma comparação insensata entre um tirano que comanda uma ditadura sanguinária e um presidente autoritário sitiado pelas instituições democráticas. Agora, o Brasil rejeitou o texto preciso dos 54 países e, no lugar da oferta de cidadania imediata aos opositores, declarou-se meramente disposto a recebê-los como refugiados apátridas.
Pior: no Conselho de Direitos Humanos da ONU, tenta articular uma resolução desdentada, a fim de evitar a condenação da barbárie estatal nicaraguense.
Lula obedece a uma terceira lógica: a fidelidade pragmática aos interesses fundamentais de Havana. Como Cuba protege os tiranos aliados em qualquer circunstância, o Itamaraty busca caminhos “construtivos” para impedir o isolamento de Ortega. Divergir da “linha justa” do Vaticano é, afinal, blasfêmia imperdoável.
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