Uma das causas profundas da crise democrática é a naturalidade com que se usou o termo realidade alternativa. Fernando Gabeira para O Globo:
A
leitura de alguns temas complicados me leva a escrever sobre uma
palavra simples do nosso cotidiano: solidão. Rumos políticos, ecológicos
e filosóficos apontam para ela.
No
momento em que se discute o controle das redes sociais, é preciso
lembrar que vivemos uma política definida como pós-verdade. O tsunami de
fake news, teorias conspiratórias e desinformação talvez seja apenas a
face visível.
Uma
das causas profundas da crise democrática é a naturalidade com que se
usou o termo realidade alternativa. Refiro-me a governos, não apenas a
indivíduos. Trump, que se sentia no direito de contar o número de
pessoas na sua posse de forma diferente de todos os outros observadores.
Colin
Powell foi à ONU, em fevereiro de 2003, e apresentou uma série de
imagens sobre armas de destruição em massa do Iraque. Tudo fake news. A
Rússia começou com a dezinformatsiya, termo cunhado pela KGB. Depois
introduziu a maskirovka, uma forma de iludir. Hoje já tem métodos mais
sofisticados como o controle reflexivo (upravlenie), que consiste em
disseminar notícias que forcem o adversário a tomar como racional uma
decisão que interessa aos próprios russos.
A
internet, com suas bolhas e rapidez de propagação, acabou consagrando o
mundo da pós-verdade. Só que, como diz Hannah Arendt, precisamos de um
mundo comum de fatos (a Terra gira em torno do Sol, dois mais dois igual
a quatro). É nesse mundo que compartilhamos um senso comum. Alguém diz
algo, e o outro sabe o que tem em mente ao usar a palavra. A perda desse
senso comum é um desastre para a democracia.
—
Mais do que o estado de crise da democracia liberal contemporânea, a
pós-verdade é o sintoma de um problema mais profundo que, em termos
filosóficos, deveria ser classificado como hiperindividualização ou
subjetivismo radical, algo expresso melhor usando uma palavra de nosso
vocabulário comum: solidão — diz Mirko Alagna no artigo “O chão tremendo
aos nossos pés: verdade, política e solidão”, publicado na revista Soft
Power.
Enquanto
a crise democrática avança para a solidão, a ameaça é grande no campo
ambiental. Muitos que reconhecem o aquecimento global defendem que o
avanço tecnológico resolverá todos os problemas. Como lembrou John Gray,
viveríamos numa espécie de bolha marcada por uma profunda solidão, já
em curso com a progressiva extinção das espécies.
O
grande filósofo moderno Nietzsche, ao afirmar que Deus estava morto,
acreditava sinceramente que caminhávamos para uma liberdade maior,
livres da mortificação e culpa impostas pela religião. Mas a liberdade
de criar seus próprios padrões morais era vista por ele também como um
nomadismo, uma distância da sociedade, enfim, uma solidão olímpica do
homem superior. Ao combater a metafísica, acabou se abraçando a ela.
O resultado é também uma profunda solidão.
Os
caminhos que nos trouxeram aqui foram os da liberdade individual.
Antígona, a personagem grega, simboliza essa luta. A liberdade é um
grande valor ocidental. Mas o próprio autor da tragédia, Sófocles,
acentuava que todas as ações humanas que ignoram limites levam à
destruição.
Camus
perguntava na sua leitura de Nietzsche: liberdade de que ou liberdade
para quê? Pode ser uma indagação útil para a formulação de uma política
pós-liberal. Ainda não conheço seus contornos, mas acredito que
regulamentar as redes sociais é um dos seus passos embrionários.
Na
semana passada, a revista Atlantic intitulava um trabalho sobre
extremismo político e religioso nos EUA com a expressão “nova anarquia”.
É possível que tenhamos chegado perto de uma nova expressão do
anarquismo, mas sem o romantismo e a fundamentação do passado. Apenas um
mundo de teorias conspiratórias, sem base real compartilhada, um espaço
hostil a qualquer relação de confiança.
Postado há 6 days ago por Orlando Tambosi
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