Karl Popper chamava “gentlemanship” a esta capacidade de conviver tranquilamente com pontos de vista diferentes. Popper insistia que este pluralismo “cavalheiresco” se distinguia radicalmente do tribalismo e do fanatismo — revolucionário e/ou contra-revolucionário. Texto do professor João Carlos Espada para o Observador:
1 Na
próxima sexta-feira, 10 de Março, será lançado em Oxford o novo livro
de Timothy Garton Ash, Homelands: A Personal History of Europe (Bodley
Head/Yale University Press). O livro acaba de ser elogiosamente
recenseado no FTWeekend e tinha sido também elogiosamente referido por
The Economist, na edição de 25 de Fevereiro. Estão desde já previstas 15
traduções, incluindo em Portugal.
A
obra será revisitada por Tim Garton Ash no 14th Dahrendorf Colloquium,
também em Oxford, a 28 de Abril, com a participação de Ivan Krastev,
Anne Applebaum e Francis Fukuyama, entre outros. Por feliz coincidência,
ou talvez não só por feliz coincidência, Tim virá a Portugal apresentar
o livro também numa Ralf Dahrendorf Memorial Lecture (a 14ª), no âmbito
da 31ª edição anual do Estoril Political Forum, em 26-28 de Junho, no
clássico Estoril Palace Hotel.
2
Vale a pena dizer algumas palavras sobre o livro de Tim Garton Ash e,
já agora, sobre esta repetida associação luso-britânica entre ele e Lord
Dahrendorf.
Ainda
que com 26 anos de diferença de idade, ambos foram anti-comunistas
convictos [Dahrendorf (1929-2009) foi também resistente anti-nazi, preso
por estes na sua Alemanha natal, quando tinha 15 anos]. Durante as
décadas de 1970 e 1980, ambos participaram activamente no apoio aos
dissidentes anti-comunistas na Europa Central e de Leste. Em 1989, ambos
saudaram enfaticamente a queda do Muro de Berlim, e apoiaram também
enfaticamente a transição à democracia no Leste europeu.
Sintomaticamente,
no entanto, ambos foram muito prudentes, para dizer o mínimo, sobre a
utilização da expressão “revolução” quando aplicada às transições
democráticas que enfaticamente apoiaram.
3
Ambos sublinharam que há pelo menos dois conceitos de “revolução” e que
por isso o termo se tornou escorregadio, para não dizer simplesmente
enganador. Na tradição de Karl Popper, ambos recordaram que houve
revoluções relutantes, como a inglesa de 1688/89, em parte também a
revolução americana de 1776, e revoluções ardentes, como a francesa de
1789 e a soviética de 1917.
Basicamente,
as revoluções relutantes ocorreram com vista a criar, ou restaurar, um
sistema de regras gerais constitucionais que permitissem a reforma sem
revolução, isto é, a concorrência e a alternância pacíficas entre
propostas rivais. As revoluções ardentes visaram atingir um modelo final
de sociedade — um blueprint, como lhe chamou Karl Popper — em que os
dissidentes desse modelo final são tratados como inimigos. Por
contraste, no sistema de regras gerais gerado pelas revoluções
relutantes, a variedade de pontos de vista é respeitosamente tratada no
Parlamento — onde umas vezes ganham uns e outras vezes ganham outros.
4 Este
é um tema de magna importância que não é possível tratar em detalhe
neste espaço. Mas achei que tinha de o referir porque está crucialmente
associado ao argumento de Garton Ash neste seu livro mais recente.
Grande
parte da obra é dedicada a um olhar retrospectivo sobre a resistência
anti-comunista na Europa Central e de Leste, bem como sobre as felizes
transições à democracia que tiveram lugar após a queda do Muro de
Berlim. É também uma defesa intransigente da resistência da Ucrânia
contra a infame invasão czarista-comunista da Rússia do sr. Putin.
Mas,
na parte final, o livro contém também um alerta muito preocupado sobre a
crescente polarização política nas democracias liberais do Ocidente.
Seitas, ou tribos, rivais esquecem, ou simplesmente ignoram, a distinção
entre regras gerais constitucionais e propostas políticas particulares.
Identificam por isso a democracia com as suas propostas políticas
particulares — e esse atavismo iliberal tem produzido resultados pelo
menos patéticos, como penosamente pudemos observar em Washington a 6 de
Janeiro de 2021 e em Brasília a 8 de Janeiro deste ano. Do outro lado do
tribalismo, auto-designado por “woke”, assistimos diariamente a
tentativas de “cancelamento” da liberdade de expressão, em nome, mais
uma vez, da “causa certa ou correcta”.
5 Tim
Garton Ash conclui o seu livro com uma tocante evocação de seu pai, que
combateu nas tropas britânicas na Normandia, em 1944, em defesa da
democracia liberal e da libertação da França do jugo nazi. Num almoço
evocativo na Normandia, Tim propõe fraternalmente a um eurocéptico
francês, eleitor de Marine Le Pen, um brinde à Europa, “quand même et
malgré tout”.
Creio
que o brinde é muito apropriado. No Reino Unido, Tim tem sido sempre um
empenhado “Remainer” e activo opositor do Brexit. A revista em que
escrevia nos anos 1980/1990, The Spectator, tornou-se basicamente a
favor do Brexit. Ainda assim, acabou de convidar Tim a publicar um
artigo sobre o seu livro. E o director da época em que Tim era colunista
da Spectator — o biógrafo de Margaret Thatcher, e actual colunista,
Charles Moore — é um Brexiteer. Mas mantém cordiais relações com Tim
Garton Ash e estará com ele (e connosco) no Estoril Political Forum em
Junho.
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Karl Popper chamava “gentlemanship” a esta capacidade de conviver
tranquilamente com pontos de vista diferentes. Popper insistia que este
pluralismo “cavalheiresco” se distinguia radicalmente do tribalismo e do
fanatismo — revolucionário e/ou contra-revolucionário.
Talvez me seja permitido concluir este texto com um brinde à “gentlemanship” — “quand même et malgré tout”.
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