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Em suma, a bolha da mentalidade de extrema direita furou, com a realidade entrando por todos os seus furos, como águas num navio afundando. Artigo do professor Denis Rosenfield para o Estadão:
A
experiência dos últimos quatro anos foi rica em ensinamentos, em
particular o da extrema direita no poder. Embora no início o desenho não
estava nítido, ganhou no decurso do tempo contornos precisos. O
antipetismo foi a sua bandeira primeira, num amálgama de valores
conservadores e liberais, dando progressivamente lugar a pautas
antidemocráticas e antiliberais. O estilo bronco e, às vezes, engraçado
de Bolsonaro foi se mostrando grotesco e mesmo cruel em sua campanha
contra a vacinação, literalmente gozando da morte alheia, expondo sua
falta completa de compaixão – algo, aliás, contrário aos valores
religiosos que dizia defender.
O
“jogo dentro das quatro linhas da Constituição” foi uma mera encenação
com o intuito de minar a ordem democrática, de preferência via eleições,
como se a democracia pudesse ela própria ser subvertida,
paradoxalmente, por instrumentos eleitorais. A campanha contra o sistema
eleitoral, o combate insano de Bolsonaro contra as urnas eletrônicas e a
contestação das eleições puseram a nu um líder de perfil claramente
autoritário. Quem com ele não estava se tornava um inimigo, inclusive
seus amigos de ontem. Uma vez que o malogro de seu projeto reeleitoral
se esboçava, a tentativa mais explícita de golpe foi se apresentando
como uma alternativa real.
Fiou-se
ele nas Forças Armadas e, em particular, no Exército, acreditando que
elas o seguiriam em quaisquer circunstâncias, mesmo ao arrepio da
disciplina militar. Ocorre que, no jogo do poder, a maior parte dos
militares só aceitou jogar nas quatro linhas da Constituição, rechaçando
qualquer arremedo de legalidade para o emprego da violência. Militares
avançados se puseram na consolidação da ordem democrática, dizendo não a
qualquer tentativa golpista. Os renitentes terminaram se alinhando,
visto que sua formação os colocava na defesa da disciplina e contra
qualquer tipo de quebra de hierarquia. Uma instituição hierarquicamente
quebrada deixa de ser propriamente uma instituição de Estado. Ali
fracassou o golpe.
O
estertor deste processo foram as manifestações do dia 8 de janeiro, com
a invasão e depredação dos centros do poder republicano: o Executivo, o
Legislativo e o Judiciário. O simbolismo foi forte. A máscara
democrática caiu, entrando em seu lugar a violência própria da extrema
direita, embora saibamos que não lhe é exclusiva, haja vista a
experiência comunista. A horda bolsonarista agiu sem freios, ainda
acreditando em seu líder, o “mito”, que viria a liderar presencialmente
este processo, crendo, ademais, que os militares de extrema direita nele
a seguiriam. A partida democrática, porém, já estava previamente ganha,
seja pelo pleno funcionamento das instituições, seja pelo resultado
eleitoral majoritariamente reconhecido, seja pela atuação decisiva dos
militares constitucionalistas. E o “mito” sumiu!
O
“mito” refugiou-se nos arredores da Disney, como se lá fosse mais
divertido do que o seu próprio país, após as arruaças e instabilidades
política e institucional aqui produzidas. Contudo, a extrema direita
vive de seus líderes, pessoas resolutas em seu processo político, como
bem demonstraram figuras como Hitler, Mussolini e Franco. Enfrentaram
intempéries até chegarem ao poder e lá se consolidarem. O líder mantém a
coesão de seus liderados, uma espécie de cola que a todos une. Sem esse
fator agregador, seus apoiadores se dispersam. O que podem hoje bem
pensar aqueles que, com chuva, calor e frio, se reuniram na frente dos
quartéis, quando contrastam a sua experiência com a do “mito” no
aconchego de um condomínio residencial em Orlando, com todas as
comodidades materiais?
A
questão que se coloca, portanto, é a de se essa experiência eu diria
limite da extrema direita tem condições de perpetuar-se, não apenas por
causa da derrota do “mito”, mas principalmente pelo seu sumiço.
Provavelmente, os que nele acreditaram, num número impressionante de
cerca de 50% do eleitorado, vão agora escolher novos caminhos,
considerando que muitos que o seguiram o fizeram por rechaço à
experiência petista. Agora, as posições se invertem, com Lula tendo
sido, por sua vez, eleito por repúdio à experiência bolsonarista. O
Brasil continua oscilando neste pêndulo.
A
força do bolsonarismo estava em sua coesão sob o seu líder, em
campanhas midiáticas baseadas na mentira e no ataque constante a
inimigos reais e imaginários, em motociatas cujo perfil se assemelhava,
num mundo digital, às milícias nazistas ou fascistas. No caso destas,
com organizações próprias e firme apoio partidário. Aqui, seja por falta
de tempo, seja por ausência de um projeto totalitário mais firme, a
improvisação terminou se impondo.
Em
suma, a bolha da mentalidade de extrema direita furou, com a realidade
entrando por todos os seus furos, como águas num navio afundando. Resta,
agora, saber se haverá uma força de centro, mais à direita ou mais à
esquerda, capaz de reunir esses despojos ou se o bolsonarismo ainda
tentará reorganizar as suas forças.
Postado há 3 days ago por Orlando Tambosi
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