MEDIÇÃO DE TERRA

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domingo, 26 de fevereiro de 2023

O Carnaval dos sonhos dos novos tempos

 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

Se eu pudesse, daria o exemplo. Pularia segundo a minha herança cultural verdadeira, que é a de descendente de operários e camponeses italianos. A crônica de Fernando Tosetto para a revista Crusoé:


O amigo não se ofenda se eu acreditar que você pulou Carnaval. Eu pulo também – não como folião, mas como furão, como quem dá o cano e falta ao compromisso. É que não me dou bem com o trugundum, não suporto o calor, não tenho mais vitalidade, ficar bêbado está cada vez mais chato e, cá entre nós, tenho um certo receio de contrair hanseníase do suor e da saliva alheios. Mas isso sou eu; o amigo talvez seja diferente. O amigo talvez tenha sido bravo e corajoso e se esbaldado nos bloquinhos; se comovido e aberto os braços em êxtase na avenida; se desmanchado ante o esplendor que nela fulgiu e, ah, tenha enfim sido um folião à vera, um folião de mãos cheias.

Bem, se foi assim, espero que o amigo tenha, ao menos, pulado o Carnaval com consciência. Que tenha respeitado as minorias e pulado seu Carnaval segundo a sua própria herança cultural, sem se apropriar de nada que seja dos outros. Essa, aliás, é outra razão para eu não pular Carnaval: para ser fiel à minha herança eu teria que me fantasiar de paulistano, ou seja, pôr terno, colete, gravata, sapato Vulcabrás e pastinha 007 (ou carregar uma pizza). Não é, como direi, a indumentária do desbunde.

Mas falemos do amigo: não reforçou os estereótipos, reforçou? Não invisibilizou nenhum grupo étnico, invisibilizou? Vejamos: não pulou fantasiado de índio, pulou? (A menos que o amigo seja índio. É?) Não pulou fantasiado de divindade pagã, pulou? (A menos que o amigo seja uma divindade pagã. É? Se for, não me fulmine.) Não pulou de abadá, pulou? (A menos que o amigo só se vista de abadá: durma de abadá, acorde de abadá, vá trabalhar de abadá, vá a casamento e a enterro de abadá. É isso?) Não pulou vestido de mulher, pulou? (A menos que o amigo seja mulher. É?) Não pulou vestido de padre, pulou? (A menos que o amigo seja padre; se for, a bênção.) Não pulou vestido de tirolês, pulou? (A menos que o amigo seja tirolês. Se for, cante um yodel. Eu gosto.) Não pulou fantasiado de boy band coreana, pulou? (A menos que o amigo seja uma boy band coreana. Se for, cante comigo a marchinha do identitário: “ei, você aí, me dá um dinheiro aí”).

Espero sinceramente que a resposta a todas essas perguntas (e a qualquer outra pergunta parecida com essas) tenha sido um sonoro, decidido e democrático não. E que o amigo tenha pulado Carnaval como o que é, seja lá o que o amigo for.

Não pense porém que digo tudo isto como uma forma irônica de desaprovar ou debochar dessas precauções. Não, não, não. Eu as estimulo de verdade, com sinceridade, quase de modo militante. É que acredito que toda restrição, toda proibição, todo empecilho, toda autocensura é uma oportunidade para o exercício da criatividade. Ela te permite ser original e sambar na cara dos estereótipos e dos automatismos. E se o amigo conseguir fugir dos estereótipos e dos automatismos do Carnaval – logo dos do Carnaval! – já fez um bem a si mesmo e, por tabela, a toda a sociedade.

Sou tão sincero no que digo que eu mesmo, se pulasse Carnaval, daria o exemplo. Eu pularia segundo a minha herança cultural verdadeira, que é a de descendente de operários e camponeses italianos (o meu pai era faz-tudo; meu avô, carpinteiro; meu parente mais parrudo era o bisavô vinhateiro): sairia de macacão de brim, camisa xadrez, boné, sapatão e uma chave de boca no bolso de trás das calças. Original até umas horas: quem já viu folião operário? Nem em filme do Guarnieri. Mereceria, no mínimo, algum prêmio ou reportagem.

E outra: eu bem podia sair do meu rolê no bloquinho com um emprego de encanador ou de funileiro. Samba no pé, respeito à diversidade e carteira assinada: o Carnaval dos sonhos dos novos tempos.
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