Sob o silêncio cúmplice da companheirada ideológica, Daniel Ortega e Rosario Murillo, líderes de um regime de opereta, avançam rumo ao delírio. Vilma Gryzinski:
“Não
se confundam, eu não sou opositor, sou sandinista”. Assim se definiu
Marlo Sáenz Cruz, conhecido como Chinês Enoc, um sandinista histórico
daqueles de usar boina de Che Guevara e defender incondicionalmente
Daniel Ortega como um bastião da luta contra o imperialismo americano.
Libertado,
transportado e hospedado à custa do imperialismo, depois de nove meses
de prisão por causa de uma disputa interna com Rosario Murillo, a
verdadeira instância final do poder, ele admitiu: “Agora, depois que caí
preso, acho que é (uma ditadura)”.
Sáenz
esteve entre os 222 presos políticos libertados por pressão dos Estados
Unidos, para onde foram levados direto da cadeia. Como execrável
vingança, Ortega mandou o legislativo aprovar a cassação da
nacionalidade de todos por “traição à pátria”, uma punição gravíssima
que viola os direitos mais fundamentais reconhecidos pelas nações
civilizadas.
Exceto, naturalmente, se o castigo desproporcional for infligido por um companheiro.
“Num
país normal, eles deveriam voltar para suas casas e abraçar seus
filhos, num estado que garantisse seus direitos. Eles saíram de seu país
porque não há garantias de respeito aos direitos humanos”, disse Arturo
McFields, que era embaixador da OEA, em Washington, quando resolveu
romper com o regime nicaraguense e viver no exílio.
O
ex-embaixador condenou o silêncio de “uma esquerda latino-americana
omissa e submissa face às terríveis violações dos direitos humanos” na
Nicarágua.
“Isso inclui México, Argentina e também Bolívia e Brasil”, especificou.
Para nossa vergonha, inclui mesmo. O único que escapa é Gabriel Boric, presidente do Chile.
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A
expansão da esquerda populista na América Latina está deixando a dupla
Daniel Ortega e Rosario Murillo mais segura no poder que ocupam
literalmente – e pode ter até ajudado no acordo feito com os Estados
Unidos para libertar os presos políticos.
Com
a “concessão”, Ortega e Murillo se livraram de presos incômodos, como
Cristiana Chamorro e os diretores do jornal La Prensa – confiscado pelo
regime. E de sandinistas históricos como Dora María Téllez, a Comandante
Dois da época da guerrilha contra a ditadura somozista, presa numa
solitária sem luz, com quinze quilos perdidos durante o período de treze
meses de cruel detenção em El Chipote até a libertação na semana
passada.
Dora
Téllez foi uma das pioneiras na ruptura com o regime que nada mais tem
dos ideais esquerdistas da época da luta contra a ditadura. O Chinês
Enoc seguiu até muito recentemente com o que é chamado de ROM, ou Regime
Ortega/Murillo. Chegou a participar, de escopeta na mão, da repressão
aos protestos estudantis de 2018, com um saldo de mais de 350 mortes.
O
rompimento aconteceu porque achou que Rosario Murillo, também conhecida
pelos apelidos de Chayo ou simplesmente La Bruja, estava sabotando os
sandinistas históricos em favor de uma ala mais jovem entre a qual
escolheu seus protegidos. Além, claro, de manipular, Ortega.
Estamos
falando de uma mulher que ficou do lado do marido e contra a própria
filha, quando esta denunciou anos de violações sexuais praticadas pelo
líder sandinista.
Rosario
Murillo se veste como uma cópia mal feita de Frida Kahlo e invoca
princípios “espiritualistas”, expandindo sempre as fronteiras do
ridículo com suas preleções transmitidas diariamente. Ortega também faz
os longos discursos típicos da estirpe bolivariana. O mais recente foi
para tentar desmoralizar o bispo Rolando Álvarez, um dos únicos dois
presos políticos que não quiseram embarcar no avião do exílio para os
Estados Unidos.
Um
dia depois, foi condenado a 26 anos de prisão em julgamento sumário.
Ortega disse que Álvarez estava na fila de embarque quando começou a
dizer que não iria porque “primeiro tinha que falar com os bispos”,
contestando uma “decisão do Estado nicaraguense” que não tinha o direito
de questionar. Chamou-o de desequilibrado e energúmeno.
Ao
contrário da versão maldosa de Ortega, o bispo decidiu não embarcar com
uma frase de extrema dignidade: “Que sejam livres, eu pagarei pela
condenação deles”.
É
possível que líderes da esquerda brasileira com idade para se lembrar
dos companheiros mandados ao exílio em troca de embaixadores
sequestrados não vejam as semelhanças com o desterro dos 222
nicaraguenses (com a diferença de que estes não estavam, nem de longe
,na luta armada)?
Postado há 3 days ago por Orlando Tambosi
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