O paradigma econômico pode iludir-nos com crescimento, conforto e bens materiais durante algum tempo, mas não é capaz de suprir a longo prazo as necessidades que dão sentido à experiência comunitária. Patrícia Fernandes para o Observador:
O
crescimento do sentimento de invisibilidade de parte da população
revelou-se de forma clara em 2016, quando a maioria dos membros das
elites, intelectuais e políticas, foi surpreendida pelo resultado do
referendo no Reino Unido e pela eleição de Donald Trump. Na verdade, os
sinais já se encontravam à nossa disposição, mas, como muitas vezes
acontece, temos dificuldade em compreender aquilo que não queremos
aceitar.
No
caso britânico, os sinais podiam ser encontrados no crescente
descontentamento dos grupos designados como “os left behind” ou “o
squeezed bottom”, que têm sofrido diretamente os efeitos de uma economia
globalizada. Esse descontentamento traduziu-se ainda antes do referendo
com a queda progressiva do chamado “Red Wall”. Como Robert Ford e
Matthew Goodwin chamam a atenção em Revolt on the Right: Explaining Support for the Radical Right in Britain,
o crescimento do UKIP em 2014 fez-se maioritariamente por conta de
trabalhadores brancos do sexo masculino, que tendo votado Labour
anteriormente se sentem abandonados pelo partido desde Tony Blair. (Com
as eleições gerais de 2019, o Red Wall tornar-se-ia azul.) Na verdade,
os argumentos de cariz económico que os europeístas repetiram até à
exaustão em defesa da permanência não se repercutem na vida de milhões
de britânicos – que sentem o fosso crescente entre a sua vida, que
piorou em resultado de uma economia aberta e globalizada, e a das
elites, que beneficiam direta e imediatamente desse novo mundo, como
David Goodhardt assinala em The road to somewhere.
Contudo,
mais importante do que o elemento económico, o que esteve em jogo no
referendo, como Roger Scruton foi chamando repetidamente a atenção nos
meses que antecederam a decisão, era uma questão de identidade. E isto
não só no sentido de a UE comportar um simbolismo que desafia
diretamente a tradição britânica, como o filósofo inglês explica,
mas também no que diz respeito à imigração e ao facto de a UE pretender
representar um mundo sem fronteiras. O problema é que, como diz Scruton, sem confiança e sentimento de pertença não existe possibilidade de comunidade, democracia, política.
Longe
de ter sido uma ocorrência inesperada, o Brexit foi resultado da
mudança que tem caracterizado as sociedades ocidentais nas últimas
décadas: o paradigma económico pode iludir-nos com crescimento, conforto
e bens materiais durante algum tempo, mas não é capaz de suprir, a
longo prazo, as necessidades identitárias que dão sentido à nossa
experiência comunitária. Isto não significa que as questões económicas
sejam ignoradas, mas antes que são re-interpretadas de um ponto de vista
identitário – que nos remete para uma reflexão sobre confiança,
pertença e comunidade.
No
que diz respeito à eleição de Donald Trump, e apesar das
especificidades norte-americanas, podemos encontrar linhas de explicação
paralelas. Pouco depois da eleição, Mark Lilla defendeu, no The New York Times,
que a vitória de Trump resultava da viragem identitária que os liberais
(em sentido norte-americano) tinham adotado e que tinha esvaziado o
sentido político do partido democrata:
“A
fixação em diversidade nas nossas escolas e na imprensa produziu uma
geração de liberais e progressistas narcisicamente inconscientes das
condições de vida fora dos seus grupos autodefinidos, e indiferentes à
tarefa de contactar com americanos de todas as origens sociais.”
Incapazes
de autocrítica (basta verificar a reação ao artigo de Lilla, um
convicto democrata), muitos optaram por insultar os eleitores de Trump,
como Vítor Bento
chamou a atenção logo a seguir à eleição: “Sexistas, machistas,
racistas, xenófobos, brutos, primários, deploráveis, foram alguns dos
qualificativos usados pela elite bem pensante (a que um Gramsci actual
atribuiria a nova “hegemonia cultural”) para caracterizar os eleitores
que votaram Trump.”
No
entanto, tal como aconteceu com o Brexit, não é assim tão difícil
compreender a vitória de Trump. Ela resulta do “Manufacturing Belt” que a
economia globalizada transformou em “Rust Belt; e de um “Bible Belt”,
que tem reagido contra a agenda progressista que destrói a tradição
moral e religiosa; mas também do designado “Suicide Belt”, que tem sido
estudado pelos economistas Angus Deaton e Anne Case, como Vítor Bento
refere.
Num curto documentário
do Wall Street Journal, os dois economistas explicam como cunharam o
termo “deaths of despair” para aludirem às mortes relacionadas com o
abuso de álcool e drogas (a crise de opiáceos levou a que, em 2017, a
HHS a declarasse uma emergência de saúde pública), e em particular aos
suicídios, que registam taxas inéditas em homens brancos entre os 45 e
os 54 anos. Os autores referem alguns fatores que podem explicar o
fenómeno, mas é possível desde logo apontar uma relação direta com o
nível de escolaridade: é duas vezes mais provável que aqueles que não
obtiveram diploma universitário cometam suicídio do que aqueles que o
obtiveram. A conclusão de Deaton e Case é a de que a economia atual
gerou um mundo que é benéfico para uma parte minoritária da sociedade
norte-americana, mas que está a deixar a maioria para trás.
Não
é, por isso, surpreendente que, por todo o mundo ocidental, essa
maioria se esteja a revoltar contra a elite globalizada e esclarecida.
Entre nós, habituamo-nos a dizer que o elevador social está avariado,
mas esse não é um problema exclusivamente português. E parte dessa
avaria resulta de uma reformulação das ideias de esforço, trabalho e
mérito. É a essa reformulação que dedicarei o próximo texto.
P.S.:
Por péssimas razões, o debate sobre imigração parece ter finalmente
começado em Portugal. Não deixa de ser curioso como o assunto é colocado
entre nós como se fôssemos os primeiros a ter de lidar com o tema (algo
que se verifica recorrentemente). Na verdade, a maioria das sociedades
ocidentais já está numa fase avançada deste debate e seria importante se
pudéssemos aprender alguma coisa com o que foi discutido e
compreendido. Desde logo, estarmos de acordo com o princípio democrático
básico de que falar sobre o assunto não pode ser um opróbrio. O impulso
pavloviano de recorrer ao insulto para catalogar quem tenta falar sobre
o tema não é útil, nem inteligente. A imigração levanta, a diferentes
níveis, muitos problemas e seria bom que pudéssemos falar sobre eles por
forma a descobrir uma resposta social que nos comprometesse. É a isso
que geralmente se chama democracia. Sem medo de represálias na tentativa
de discutir o assunto, merece referência Douglas Murray, quer nesta curta intervenção durante o debate sobre o tema no The Oxford Union Society (2014), quer em A Estranha Morte da Europa (2017).
Postado há 3 days ago por Orlando Tambosi
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