BLOG ORLANDO TAMBOSI
Poucos exemplos bastam para mostrar que a palavra “mutilação” não é um exagero no caso — e, vejam, tudo isso aconteceu com a anuência da companhia que lida com os direitos das obras de Roald Dahl desde sua morte. Via Crusoé, a crônica de Ruy Goiaba:
Roald
Dahl (1916-1990) é um dos mais famosos e populares escritores de
histórias infantis do Reino Unido — aqui no Brasil, ele talvez seja mais
conhecido pelas adaptações de suas obras para o cinema, como A
Fantástica Fábrica de Chocolate e James e o Pêssego Gigante. Dahl acaba
de se tornar mais uma das vítimas da censura do bem, aquela que mutila
livros porque só quer proteger as crianças (e alguns supostos adultos)
das coisas feias do mundo.
Resumindo
o caso, a Puffin Books — que publica os livros de Dahl e é subsidiária
da Penguin Random House, uma das maiores editoras do mundo — anunciou
que tinha submetido a obra do escritor a uma revisão de “sensibilidade”,
com mudança ou supressão de trechos que pudessem ser considerados
ofensivos. A alegação era que Dahl escrevera os livros muito tempo atrás
e eles precisavam de atualização. O jornal The Telegraph deu-se ao
trabalho de contar e acabou descobrindo centenas de mudanças nas
histórias. Agora, no mundo de Dahl, não existem mais “gordos” nem
“feios”, os homens-nuvem de James e o Pêssego Gigante viraram
pessoas-nuvem, os filhos do Sr. Raposo em O Fantástico Sr. Raposo
passaram a ser filhas e uma menção a “tratores pretos” nesse livro foi
cortada (não é piada; quem dera fosse). Em Matilda, sumiu a citação a
Rudyard Kipling, aquele odioso colonialista britânico, e Jane Austen
entrou no seu lugar.
Esses
poucos exemplos bastam para mostrar que a palavra “mutilação” não é um
exagero no caso — e, vejam, tudo isso aconteceu com a anuência da
companhia que lida com os direitos das obras de Dahl desde sua morte.
Neste ponto, leitores brasileiros devem se lembrar das polêmicas
envolvendo passagens racistas nas obras de Monteiro Lobato, ainda hoje
nosso maior escritor para crianças. A pessoa física de Dahl também não
era flor que se cheirasse, a começar pelo antissemitismo. Salman
Rushdie, que entende duas ou três coisas sobre censura e foi esfaqueado
recentemente por causa daquilo que escreveu, destacou isso ao tratar do
caso no Twitter: Dahl não era “nenhum santo”, mas a censura é absurda, e
tanto a editora quanto o espólio deveriam se envergonhar.
(Alguém
na rede social criticou Rushdie pela parte do “nenhum santo” e afirmou
que ele estava querendo pagar pedágio à esquerda censora. O autor de Os
Versos Satânicos respondeu ironicamente: “Ele [Dahl] era um antissemita
confesso, com fortes inclinações racistas, e se juntou ao ataque contra
mim em 1989 [ano da fatwa decretada pelo aiatolá Khomeini]. Mas obrigado
por me repreender por defender seu trabalho da execrável Polícia da
Sensibilidade”. Ou seja: se Salman Rushdie, que tem ótimas razões para
odiar Dahl, consegue argumentar que a obra dele não deve ser
desfigurada, você também pode.)
Especialistas
mais habilitados a falar sobre literatura infantil do que eu, como o
colunista da Folha Bruno Molinero, apontam que o ataque a Dahl é uma das
consequências de a literatura infantojuvenil não ser encarada como
arte, e sim como uma espécie de arma pedagógica para que as crianças
aprendam bons hábitos e se tornem bons cidadãos. Falei disso quando escrevi aqui sobre o saudoso João Carlos Marinho,
cujo livro mais conhecido, O Gênio do Crime, foi uma das minhas portas
de entrada na literatura adulta — inclusive por seu glorioso
desinteresse em dar lições de moral. Hoje, a obra de Marinho seria
impublicável: não consigo imaginar o “gordo” Bolachão, detetive-mirim de
12 anos, tentando se passar por uma criança “perfeitamente meningética”
de 8 anos para elucidar um caso. Fariam uma bela fogueira para imolar o
livro e o autor.
O
problema, acrescento eu, é que obras adultas também estão na mira da
Polícia da Sensibilidade, muito empenhada em tratar todos os leitores
como crianças que precisam ser protegidas de expressões ofensivas. Há
várias maneiras de lidar com passagens problemáticas na literatura, seja
ela infantil ou adulta: contextualizar, explicar por que o trecho é
problemático, ressaltar as diferenças entre a época em que o livro foi
escrito e a nossa. Mas o espírito autoritário que anima a pior esquerda e
a pior direita prefere proibir ou reescrever o passado. A velha
censura, como a que proibiu O Amante de Lady Chatterley, de D.H.
Lawrence, por mais de 30 anos no Reino Unido acabava servindo de
propaganda para as obras; a nova se pretende moderninha e inclusiva, mas
é basicamente uma versão 2.0 de Josef Stálin apagando seus inimigos
políticos de fotos antigas.
Espero
que a literatura e as outras artes sobrevivam à fantástica fábrica de
censurados. Mas não boto muita fé nisso: temo que os escritores das
próximas gerações já venham com o chip da autocensura e mais preocupados
em serem reconhecidos como gente boazinha, “mudar o mundo” com suas
obras, aquelas coisas. O mundo continuará sendo a porcaria que é, mas a
arte estará cheia de bons sentimentos — aqueles que, como dizia André
Gide, fazem a má literatura.
***
A GOIABICE DA SEMANA
O
destaque desta vez vai para a pluralidade do grupo de trabalho que o
governo Lula criou para “combater o discurso de ódio”, que será
presidido pela ex-deputada Manuela D’Ávila e terá a participação de
representantes da sociedade civil. Esses representantes — ou pelo menos
os nomes que foram divulgados até agora — cobrem muito bem o espectro
que vai da centro-esquerda até a esquerda muito esquerdistaça pra valer
mesmo. Compreensível: se o discurso é de ódio, quem é de esquerda só
pode ser vítima, jamais propagador. É um espectro político que se compõe
exclusivamente de ursinhos carinhosos.
Manuela D’Ávila, que vai comandar o grupo de trabalho sobre “discurso de ódio”
Postado há 23 hours ago por Orlando Tambosi
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