Na Inglaterra, não morreu o liberalismo econômico, mas o dinheiro barato que durante anos deixou os governos, à direita e à esquerda, ignorarem problemas e adiarem reformas. Rui Ramos para o Observador:
No
mundo, quase tudo acontece. Por isso, era de esperar que algum dia
víssemos os socialistas mais retintos a aplaudir os “mercados
financeiros”. Foi agora. A 23 de Setembro, o governo conservador do
Reino Unido propôs-se baixar impostos, e os mercados reagiram
brutalmente. A libra desvalorizou e a cotação da dívida britânica caiu,
para grande aflição dos fundos de pensões. Liz Truss teve de engavetar
os seus planos, a seguir dispensou o ministro das Finanças, Kwasi
Kwarteng, e ontem, finalmente, demitiu-se. Para a esquerda, a começar
pelo inevitável Paul Krugman, foi um dia de Natal. Os mercados são um
dos seus grandes papões. Mas agora, que parecem ter enterrado o
liberalismo económico, ei-los tratados quase que como uma das “forças da
história” em que outrora a esquerda confiava para chegar ao socialismo.
É
isto assim? Os mercados condenaram mesmo o liberalismo económico, isto
é, a ideia de que a melhor forma de estimular o crescimento de uma
economia é aliviá-la do peso do Estado? O socialismo está de regresso e
perdoado? Não, de maneira nenhuma. Contemos a história como deve ser. Os
mercados não reagiram ao facto de Liz Truss pretender ser a Margaret
Thatcher do século XXI. Os mercados reagiram ao facto de Truss pretender
ser a Thatcher do século XXI no pressuposto de que o dinheiro, numa
época de inflação e subida de juros, ia permanecer tão barato como
antes. O problema não foram os cortes de impostos, nem os apoios ao
consumo de energia. O problema foi Truss e Kwarteng terem dado a
entender que iam financiar o défice que daí resultasse recorrendo ao
endividamento, isto é, tomando por adquirido que os mercados financeiros
estariam dispostos a pagar a liberalização, dispensando-os de cortes de
despesa, até a economia crescer. O que os mercados, isto é, os
investidores fizeram foi esclarecer que não contassem com eles,
sobretudo com o nível de endividamento britânico actual. Ficou assim
confirmado que, como os liberais sempre disseram, “não há almoços
grátis” – nem mesmo para os liberais.
A
dívida foi, nos últimos vinte anos, a grande solução para todos os
problemas das economias e sociedades ocidentais, da crise de 2008 à
pandemia de Covid. Hoje, as dívidas públicas fazem lembrar o
endividamento dos Estados no tempo das duas guerras mundiais do século
XX. De facto, reflectem também uma guerra: desta vez, uma guerra contra a
realidade, contra a necessidade de fazer reformas e de deixar as
economias desenvolverem-se. Tudo isso foi possível graças à inflação e
aos juros historicamente baixos. Ora, essa época acabou. Liz Truss quis
acreditar que ainda poderia durar para ela. Enganou-se.
Talvez
se tenha enganado mais por desespero do que por ingenuidade. Parte
desse desespero terá tido a ver com a sua imensa fragilidade política.
Para se fortalecer, precisava de uma iniciativa espectacular, e que
demonstrasse, também, que valera a pena ter saído da UE. Tentou mesmo
ser a Thatcher do século XXI? Sim, mas sem correr o risco dos debates e
confrontos com que Thatcher teve de lidar. Para isso, esperou que os
mercados lhe passassem a ela o cheque em branco que geralmente não
passam a ninguém. Portanto, o que acabou em Inglaterra não foi o
liberalismo económico. O que acabou em Inglaterra foi o endividamento a
baixo custo e, com esse endividamento, a capacidade dos governos e das
sociedades ignorarem problemas, evitarem debates e adiarem reformas. À
esquerda socialista, e até ao “centro esquerda” de Paul Krugman, é
preciso ensinar: não, os sinos não dobram por Margaret Thatcher, dobram
por vocês e por todos os que, fossem quais fossem as suas ideologias, se
habituaram a viver do dinheiro barato. Esse dinheiro acabou: foi isso
que se passou em Inglaterra.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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