MEDIÇÃO DE TERRA

MEDIÇÃO DE TERRA
MEDIÇÃO DE TERRAS

sábado, 22 de outubro de 2022

Ninguém mais tem o tribunal que nós temos

 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

Da última vez que assisti a um debate presidencial, por exemplo (foi em 1989; acho que lá estavam Brizola, Marronzinho, Sílvio Santos e Enéas), perdi três quartos dos cabelos, fiquei temporariamente cego de um olho e torto da espinha. Via Crusoé, a crônica de Orlando Tosetto:


Parei de assistir a debates políticos porque fico doente. O amigo talvez ache que eu me refiro a alguma doença psicológica, mas não é só isso: meu mal-estar é muito mais físico. Da última vez que assisti a um debate presidencial, por exemplo (foi em 1989; acho que lá estavam Brizola, Marronzinho, Sílvio Santos e Enéas), perdi três quartos dos cabelos, fiquei temporariamente cego de um olho e torto da espinha. O médico que me atendeu no pronto-socorro disse que era um caso brando de quasimoditis acutae, doença dos nervos cuja manifestação é deixar o doente parecido com o Corcunda de Notre Dame. Tomei antibióticos e uma antirrábica, e o doutor me proibiu de assistir a qualquer outro debate – inclusive mesa-redonda de futebol – pelo resto da vida, sob pena de ver a quasimoditis se transformar numa dilmoluscatitis glossolalica crônica, que não tem cura e, além dos outros sintomas, ainda deixa os olhos vesgos e aumenta muito a capacidade de falar besteira (e olha que a minha já é enorme).

* * *

Existe na língua inglesa a expressão jump to conclusions, que quer dizer “chegar a uma conclusão depressa demais, sem ter todos os fatos na mão ou na cabeça”. Bem, eu não sei quem é que previne os falantes do inglês de sair por aí saltando o brejo dos fatos curtos para a terra firme das conclusões compridas; o que eu sei é que nós, brasileiros, espanto do mundo, temos aqui uns tribunais para nos ajudar nesse tipo de escorregão.

Aliás, é impressionante a quantidade de tribunais que nós temos, não é? Afora os cíveis e criminais, aí estão os eleitorais, os de contas, os de execuções penais, os militares e, por fim, os supremos triviais e variados – todos eles agindo mais e mais sobre a nossa já limitada mobilidade, quer de palavra, quer de pensamento, quer lá do que esteja na alçada de cada corte respectiva.

E é impressionante também o conhecimento que a gente tem desses tribunais hoje em dia. Se eu, moleque nos anos 70, perguntasse ao meu pai o que é o STF, ele, talvez confundindo com SFC, responderia que era um time de futebol. Ora, eram os anos 70 e meu pai não tinha, e nem precisava ter, ideia do que fosse ou do que fizesse essa corte. Já hoje, nós não somente sabemos que é sim um time de futebol como discutimos, cada vez mais a meia voz, sua escalação, suas jogadas, suas táticas, etc. Há quem diga que evoluímos; não sou eu que vou negar.

Eu ia fugindo do assunto, entretanto. Pois o que eu ia dizendo é que somos tão sortudos, tão bem aquinhoados pelos fados, que uma corte (esqueci qual) veio nos ajudar a não ficar por aí pulando, pulando e pulando até cair com os dois pés no peito de alguma conclusão. Foi uma corte didática, data venia até preclara, usque magnânima, cheia do fumus e também do boni iuris, que veio nos alertar para o perigo de deixar que fatos verdadeiros nos levem a conclusões mentirosas.

Não sorria, amigo: antes, acompanhe o exemplo megalômano do meu caso pessoal. Estou trinta quilos acima do meu peso ideal – isso é um fato, e a verdade dele é atestada por qualquer balança de farmácia, por várias reportagens de TV e jornal, e pela cara de cachorro que tomou chuva do meu endocrinologista. Pois bem: com base nesse fato singelo, pode ser que o amigo venha a concluir que, pôxa, o Orlando é gordo, e ao alardear em cadeia nacional essa conclusão precipitada, venha a afetar a minha imagem diante dos esbeltos, aniquilar meu bom nome entre os que malham, fazer minha caveira na roda dos saudáveis, e por aí vai.

Percebeu o perigo? Notou a pirueta retórica, o twist carpado para a conclusão de que sou gordo com base tão somente na verdade meramente circunstancial de que peso trinta quilos a mais do que devia? É disso que a tal corte fala e é disso que falo eu (no meu caso; no caso dos outros, aprendi, é melhor me calar).

Veja se os Estados Unidos, aqueles atrasados, têm algo assim. Watchmen, lá, é só em filme e gibi. Veja se a Inglaterra goza de benefício tal. Veja se na Irlanda, no Canadá, na Nova Zelândia o poder público é assim benigno, assim atento, assim ligeiro, assim eficaz. Medite aí com seus botões e pare de reclamar, amigo. Caso esteja reclamando, é claro; se não estiver, muito bem, não comece: é o silêncio que aperfeiçoa as instituições. Punto e basta.

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