Xi Jinping é um líder para quem o marxismo-leninismo é uma teoria útil e multiusos, um instrumento ideológico ao serviço do nacionalismo chinês. Jaime Nogueira Pinto via Observador:
Com
a pompa e circunstância habituais, o Partido Comunista Chinês inaugurou
no Domingo, 16 de Outubro, o seu 20º Congresso. Fora também ali, no
Palácio do Povo de Pequim, que em Julho do ano passado celebrara o seu
100º aniversário.
No
ar, pairava a possibilidade de Xi Jinping, secretário-geral do Partido
Comunista Chinês e presidente da República Popular da China, prolongar a
liderança por mais cinco anos, contra o uso instalado pelas reformas de
Deng Xiaoping – transformando-se assim num líder vitalício, à
semelhança do pai-fundador e grande Timoneiro Mao Tse-Tung.
A morte anunciada da liderança colegial?
Fora
precisamente contra esse poder absoluto e vitalício que Deng impusera a
colegialidade da direcção partidária, com uma cúpula restrita de sete a
nove membros do Comité Permanente do Politburo. E com as reformas na
economia introduzira factores de capitalismo controlado politicamente;
um capitalismo de direcção central com áreas especiais para investidores
estrangeiros que favorecera, por contaminação, o nascimento de uma
classe empresarial e de uma classe média local.
Dessas
reformas decorreria, em poucos anos, o grande salto em frente da
economia chinesa, que se tornaria a segunda economia do planeta.
Terá
o sistema colegial instituído por Deng ficado em causa neste 20º
Congresso? Xi parece disposto a deixar de ser um cordato primus inter
pares, como os seus antecessores, para assumir uma direcção
personalizada e centralizadora. E na hora da inauguração do Congresso, e
no seu decurso, não houve oposição visível aos seus intentos entre os
mais de dois mil delegados.
Embora
longe do terror maoísta e dos desastres e tragédias ligados ao Grande
Salto em Frente e à Revolução Cultural, Xi e a China atravessam um
período complicado, e uma mudança do sistema dentro do sistema terá
sempre custos.
Em
democracia ou em autocracia, os governos estáveis são, em regra,
oligarquias. Nas autocracias modernas podem surgir momentos monocráticos
de governo pessoal, como foram o hitlerismo, nos anos da guerra, o
estalinismo, entre 1934 e 1953, ou o maoísmo, a partir da Revolução
Cultural. Nas democracias, sobreveio por vezes a oclocracia, mas a
oligarquia partidária, com a classe política a partilhar o poder com
alguns empresários, com a tecnoburocracia dos negócios, pública e
privada, e, na margem, com algum poder mediático e cultural é a regra.
Na
China, depois da morte de Mao, Deng Xiaoping liquidou o Bando dos
Quatro e, sempre na sombra, elevou Jiang Zemin, um quadro poderoso do
Partido de Shangai, a Secretário-Geral do PCC. Tudo isto depois da crise
estudantil de Tiananmen, que afastou os dirigentes “moles” ou
“liberais”: a União Soviética estava a dissolver-se e a última coisa que
os líderes comunistas chineses queriam era um Gorbatchev.
Também
por isso, Jiang Zemin insistiu, em 1991, nos cânones ideológicos,
sublinhando que a “luta de classes na China” estava para durar e que era
preciso combater a “liberalização burguesa”, conseguindo, assim,
manter um discurso comunista ortodoxo e prosseguir com as reformas
económicas capitalistas.
Nos
seus últimos anos de kingmaker, Deng tinha posto na calha Hu Jintao
para sucessor de Jiang Zemin. Zemin, por sua vez, fora colocando os seus
protegidos nos colectivos do Partido, das Forças Armadas, da Segurança
de Estado e do Sector Público empresarial.
Hu
Jintao teve uma liderança discreta em tempos de crescimento económico.
Xi foi favorecido por Jiang Zemin como sucessor de Hu Jintao e usou a
campanha anti-corrupção para neutralizar inimigos, reais ou potenciais.
Agora, já não tem oposição entre os “mais velhos”: Jiang Zemin está com
96 anos e problemas de saúde e Hu Jintao desapareceu da vida pública,
tendo, entretanto, Xi saneado preventivamente muitos dos seus
seguidores.
Xi
não chegou aonde está facilmente. Aos 14 anos, na altura em que o seu
pai foi perseguido pela Revolução Cultural, ouviu os Guardas Vermelhos
dizerem-lhe que “o podiam matar cem vezes”. Passou um mau bocado, como
muitos filhos de notáveis durante a Revolução Cultural, mas organizou-se
para sobreviver; e no pós-maoísmo fez a carreira clássica do quadro
partidário brilhante.
A China e a crise da ordem liberal internacional
A
guerra da Ucrânia beneficiou a posição da China no seu duelo pela
hegemonia com os Estados Unidos, duelo que já não é apenas virtual e que
lançou a Rússia nos braços de Pequim. Se bem que a posição chinesa
oficial seja cautelosa e diplomaticamente correcta – proclamando a
necessidade de diálogo entre os beligerantes para uma paz negociada – a
verdade é que a China tem apoiado Moscovo. Houve até o reviver de alguma
da cumplicidade da Guerra Fria; e com as divisões internas nos países
membros da NATO e na opinião pública norte-americana, Xi e os seus têm
todas as razões para se regozijar.
A
posição da Administração Biden de “coligar as democracias” contra a
Rússia mostrou que uma grande quantidade de Estados – do Golfo Pérsico,
de África, da América do Centro e do Sul – não alinhava com as sanções à
Rússia, e que o bloco ocidental puro e duro se resumia à NATO, à EU aos
países da ASEAN. Entretanto nos países europeus, com a crise e a
inflacção, as opiniões públicas – em França, em Itália e em Espanha –
podem estar a mudar, exigindo maior prudência nas relações com os
beligerantes e menor entusiasmo no apoio a Kiev.
Esta
pode também ser a posição de um Congresso americano dominado pelos
Republicanos, como já foi advertindo Kevin McCarthy, líder do Partido
nos Representantes.
O Partido e a Segurança
Se
algumas dúvidas houvesse quanto aos entraves aos planos de Xi Jiping
para consolidação do poder, essas dúvidas desapareceram no Congresso .
Quanto à cooptação e confirmação dos mais altos dirigentes do Partido,
os 2300 delegados têm agora a missão de eleger os 205 membros efectivos
do Comité Central e os 171 suplentes. Terão também de eleger os 25
membros do Politburo, e, no topo dos topos, os sete (ou nove) membros da
Comissão Permanente do Politburo.
A
China é uma autocracia oligárquica estabilizada, mas poderá deixar de o
ser com a concentração do poder nas mãos de Xi Jinping.
Os
paralelos com Mao parecem evidentes, mas além da analogia da situação e
da tentação, não é de crer que o frio, racional e realista Xi se preste
a ser uma réplica do Grande Timoneiro, sobretudo do tirano arbitrário,
caprichoso e com facetas paranóicas dos anos finais.
No seu discurso inaugural de cerca de duas horas, Partido e Segurança foram palavras repetidas à exaustão.
O
Partido Comunista Chinês, era e continuava a ser o grande agente do
ressurgimento da China que, nos últimos dez anos, se notabilizara no
combate à corrupção, na melhoria de vida da população, na eliminação da
dissidência em Hong Kong, no crescimento da influência internacional e
no controlo da epidemia COVID-19. Xi não referia, entretanto, os reveses
desses sucessos: o descontentamento popular perante os confinamentos
COVID-19, o efeito negativo em Taiwan da repressão de Hong Kong, a crise
da economia e do endividamento, as consequências das sanções americanas
na área tecnológica.
A
Segurança Nacional era a pedra angular de toda a reconstrução da China e
Xi falava também da Iniciativa para a Segurança Global, que já
anunciara no Fórum de Boao, o chamado “Davos asiático”. Não se alongou
sobre a questão de Taiwan; mas a reintegração da Ilha, em tempo a
definir, continuava a ser um objectivo prioritário, indissociável do
ressurgimento da nação chinesa e da sua integridade territorial.
Por
agora, e apesar das pressões e manifestações de força (como a
desencadeada pela visita de Nancy Pelosi à Ilha), o tempo e o modo da
reunificação permanecem ainda por definir, sendo certo que uma acção
armada desencadearia uma reacção também armada dos Estados Unidos e dos
seus aliados regionais, como o Japão, a Austrália e a Coreia do Sul. Daí
que Xi tenha também insistido no reforço da capacidade militar chinesa,
especialmente da Marinha.
Jiang
Zemin e Hu Jintao tinham dado uma nota pragmática da sua gestão do
partido e do poder, aparentemente sem grandes enunciados ou compromissos
ideológicos. Ao contrário, Xi, além de exercer um maior controlo
estatal sobre as empresas, tendo posto em sentido alguns grandes
empresários aparentemente esquecidos do seu lugar e das regras do jogo,
como Jack Ma, o homem da Ali Baba, mostra-se mais preocupado com as
questões ideológicas e doutrinais. O líder chinês avançou mesmo com a
fórmula “socialismo com características chinesas para a nova Era”.
Recuperar Marx
Mais.
No segundo centenário do nascimento de Karl Marx, em 5 de Maio de 2018,
Xi já definira o autor de O Capital como “o maior pensador da História
da Humanidade”, declarando-se convicto “da verdade científica do
Marxismo”.
Uma
leitura mais atenta do “marxismo” de Xi, mostra que, para o Presidente
da China, o pensamento do pai fundador deve ser adaptado ao tempo e à
cultura local e interpretado consoante. Georges Sorel não disse melhor
nem diferente, quando sublinhou a importância e a utilidade dos “cânones
de interpretação da realidade” de Marx – advertindo, entretanto, para o
perigo de, à semelhança do que fizeram e fazem muitos discípulos do
autor do Manifesto Comunista, se tomarem por dogmas o que eram cânones.
Xi,
um líder que parece capaz de juntar a prática à estratégia política – a
definição do amigo e do inimigo em forma pensante e dialéctica – quer
restaurar a plena autoridade do Partido sobre o Estado e sobre a
sociedade, sem, no entanto, interromper o desenvolvimento da economia
chinesa e a sua presença no mundo globalizado.
Quem
seguiu a história da China sabe que é da história de uma potência
milenar que se trata – ainda que caída em século e meio de humilhação às
mãos de “bárbaros” ocidentais, então militarmente superiores. Xi é um
líder com consciência histórica destes factos e da importância do
nacionalismo chinês, um líder para quem o marxismo-leninismo é uma
teoria útil e multiusos, um instrumento ideológico ao serviço do Partido
e do seu poder.
É,
assim, dentro do “Sonho Chinês” do novo Timoneiro que podemos e devemos
entender esta recuperação de Marx e do Marxismo. Talvez por isso, em
2018, num artigo do número de Outono da revista de esquerda americana
Dissent, Timothy Cheek e David Ownby tenham escolhido para título um
irónico “Make China Marxist Again”.
… Marxist, mas, acima de tudo, grande e poderosa.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário