A cacofonia dos dias de hoje é apenas um teste sobre nossa capacidade de viver em um mundo diverso e sobre o valor que efetivamente concedemos ao pluralismo. Fernando Schüler para a revista Veja:
Desde
que comecei a lidar com temas de política ouço falar na “crise das
democracias liberais”. Hoje em dia é comum escutarmos que os anos 90
foram uma época de grande euforia, mas ainda me lembro de nosso Milton
Santos denunciando a “globalização como perversidade”, e toda a conversa
em torno do Consenso de Washington. Depois veio o 11 de Setembro e o
“fim das ilusões liberais”, e logo a era Bush e o fantasma da “teocracia
americana”. Depois o apocalipse da crise de 2008 e a malhação de judas
dos “mercados desregulados”. Ainda depois veio Trump e a “nova direita”,
e prateleiras de livros nos alertando sobre como as democracias “morrem
por dentro”. Isso tudo até a vitória de Joe Biden, quando o sol parece
ter voltado a brilhar. De modo que fui ficando um tanto desconfiado. Não
tenho um “crisômetro”, para medir a temperatura das democracias
liberais, e desconfio que esse aparelhinho não existe.
Francis
Fukuyama discute o tema em seu novo livro, O Liberalismo e Seus
Descontentes, ainda sem tradução no Brasil. A polarização política
cresceu, a grande sombra chinesa projeta sua “economia de mercado sem
democracia” sobre o Ocidente, valores essenciais da tradição liberal,
como a liberdade de expressão, são relativizados e os novos
iliberalismos ocupam o centro das discussões. É por aí que Fukuyama
pauta sua análise. O veneno vem da direita e da esquerda. No primeiro
time há tipos como Viktor Orbán e Vladimir Putin, com seu apelo à ideia
de “nação” e sua acusação de que as democracias liberais se tornaram
“obsoletas”, visto não oferecer às pessoas uma base de valores
essenciais à coesão social. O discurso não responde como seria possível
estruturar uma tal base de valores em grandes sociedades sem a imposição
das crenças e modos de vida de eventuais maiorias sobre os cidadãos que
divergem. O atual debate em torno do aborto, nos Estados Unidos e no
Brasil, é apenas um sinal disso.
Algo
similar ocorre com os movimentos identitários, à esquerda. O problema
não é a demanda por direitos iguais, que está no coração do argumento
liberal, mas no seu avesso: a fúria reguladora. Algo na linha: “Joaquim
pode viver segundo a sua subjetividade, desde que não afronte o modo
como a nossa subjetividade considera que Joaquim deve se viver”.
Fukuyama provoca: “Quem fala em nome dos afro-americanos, gays ou
mulheres?”. Se alguém pensa pela própria cabeça e diverge da tribo,
torna-se um “erro”? Isso me lembrou o episódio triste do vereador negro
Fernando Holiday, chamado de “capitãozinho do mato” dadas suas ideias
divergentes em relação à retórica que ele deveria seguir. É o avesso do
liberalismo, que leva a diversidade a sério e toma como virtude, e não
como um problema, que as pessoas pensem de modo diferente e cultivem
formas por vezes exóticas de autonomia individual.
Fukuyama
põe no grupo de vilões da democracia liberal o “neoliberalismo
econômico”, que teria feito aumentar dramaticamente a desigualdade
econômica, levado a crises financeiras e colocado o mercado “acima de
qualquer outro valor social”. Cita autores como Hayek, Friedman e Gary
Becker, dizendo que suas visões ajudaram no desconforto atual ao
incentivar a demonização do papel do Estado na economia. Confesso achar
isso bastante vago. Friedman, por exemplo, propôs que o Estado
garantisse o acesso à educação transferindo recursos diretamente aos
pais, para que eles pudessem escolher a escola dos filhos. O Estado não é
demonizado, mas ajusta-se a sua função. Ele deixa de fazer o que não
sabe, abrindo espaço à liberdade dos indivíduos. O Estado regula e
financia, mas reconhece que os indivíduos são melhores juízes de seus
próprios interesses. Fukuyama dá uma boa exagerada quando pinta os
“neoliberais” não apenas como avessos ao Estado, mas também aos
“programas sociais que aliviam os efeitos das desigualdades”. Quando
leio isso, me lembro de FHC a vida inteira xingado de neoliberal por ter
criado o “bolsa esmola”, como a oposição chamava a Bolsa Escola, ter
feito a Lei de Responsabilidade Fiscal e privatizado um punhado de
estatais ineficientes.
A
raiz do drama psicanalítico que vivem nossas democracias liberais é
outra. Ela vem do “choque de abundância”, pela qual o sistema vem
passando. Abundância de informação e poder, nas mãos dos indivíduos,
dados pela revolução tecnológica. Algo que fez explodir boa parte dos
filtros institucionais — partidos, sindicatos, mídia convencional — que
ofereciam certa funcionalidade às democracias, o que não é propriamente
uma má notícia. Se há grandes manifestações de rua, como leio no
relatório da Freedom House, não vejo nisso um sintoma da “crise”, mas
uma expressão da democracia. Vale o mesmo para as novas demandas por
direitos, que podem dizer respeito a políticas de cotas raciais ou
flexibilização do porte de armas. As pessoas dispõem hoje de mais poder
para dizer o que pensam do que tinham há duas ou três décadas, e não
abrirão mão de usar esse poder. Isso significa mais, e não menos,
democracia.
A
sensação de “barulho”, de “desordem”, de permanente instabilidade que
temos hoje com as democracias provém disso. James Madison via a
propensão humana ao facciosismo, a formar grupos e lutar por razões às
vezes triviais, como um produto da liberdade. O que a tecnologia faz é
exatamente isso: aumentar o escopo da nossa liberdade. Temos mais de
meio milhão de influencers digitais no país, e o número vem crescendo. À
época da redemocratização, o que chamávamos de “sociedade civil”, no
Brasil, girava em torno de organizações como a ABI, a OAB e a CNBB. Hoje
há uma sinfonia cacofônica, e ninguém dirá que isso é menos
democrático. É apenas um teste sobre nossa capacidade de viver em um
mundo diverso e sobre o valor que efetivamente concedemos ao pluralismo.
Nossa
sorte é que nada disso é propriamente novo. Foi assim nos inícios da
modernidade, quando a imprensa se tornou onipresente e fez explodir o
debate público na Europa. Foi no embalo daquela revolução que Lutero
incendiou a Europa com suas teses sobre a reforma. Seguiram-se quase
dois séculos de guerra e fogueira, até que os europeus descobrissem, um a
um, os princípios da grande tradição que chamamos de liberalismo. O
próprio Lutero, ele mesmo um dogmático, foi um de seus iniciadores.
Quando forçado a renunciar a suas ideias, em uma dieta do império, disse
“não”. E o fez alegando razões de consciência. Razões que pertenciam
apenas a ele, um indivíduo solitário, e não à Igreja ou ao Estado.
Sempre guardei comigo essa imagem, que no fundo nos dá a melhor lição
sobre o sentido do liberalismo: o direito de dizer “não”.
No
fundo, é sobre isso que voltamos a discutir, geração após geração. O
dilema definidor da modernidade, sobre como viver juntos, em grandes
sociedades, onde as pessoas não concordam fundamentalmente umas com as
outras. Numa época confusa, em que todos parecemos falar ao mesmo tempo,
é a essa antiga pergunta que somos convidados, uma vez mais, a
responder.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 6 de julho de 2022, edição nº 2796
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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