Da Grande Fome que matou milhões durante o stalinismo à ameaça atual desfechada por Vladimir Putin, sequência de tragédias sem fim. Vilma Gryzinski:
Irá Vladimir Putin invadir a Ucrânia e anexar, mesmo que seja com outro nome, pelo menos um grande pedaço do país?
Esta
é a pergunta de 100 milhões de rublos. A lógica e os princípios
mundialmente aceitos, mesmo por países párias, sobre soberania e
autodeterminação dos povos dizem que não.
A história deixa muitas dúvidas.
O
mais veemente retrato dessa história talvez seja a estátua em Kiev de
uma menininha com tranças de camponesa e ossos furando a roupa. Velas,
flores, feixes de trigo, pães, maçãs e potes de mel são deixados a seus
pés, em imagens que lembram cenas de devoção popular em túmulos de
crianças “milagreiras” no Brasil.
As
oferendas de alimentos também simbolizam um desejo inconsciente de dar
de comer aos mortos pela Grande Fome, um dos episódios mais hediondos da
história de todos os tempos.
Aconteceu
há noventa anos, entre 1932 e 1933, um tempo histórico suficientemente
curto para ainda atormentar a memória dos vivos que tiveram avós e
bisavós afetados pela mortandade.
Três,
quatro ou até dez milhões é a quantidade de vítimas estimadas do
Holodomor, o genocídio programado dos kulaks, equivocadamente
qualificados de agricultores “ricos”, que ganhavam a vida nas férteis
terras negras que são a riqueza da Ucrânia.
Para
quebrar as resistências à coletivização do campo, Stálin fez de tudo.
Implantou impostos e cotas absurdas, deportou mais de 100 mil famílias
para a Sibéria e o Cazaquistão, decretou o confisco até dos mais
escondidos sacos de batata.
Desencadeou
assim a Grande Fome, literalmente a morte lenta por inanição de milhões
de pessoas, uma catástrofe sem precedentes em tempos de paz.
Ironicamente, não faltava comida: as vítimas teriam com o que se
alimentar se sua produção não tivesse sido confiscada pelas brigadas de
agentes especiais enviadas para quebrar a espinha dos agricultores e
destruir qualquer resistência.
Mesmo
os que não resistiam eram exterminados. Em sua eliminação sistemática
de inimigos reais ou imaginários, Stálin mandou matar 99 dos 102
integrantes da cúpula comunista na Ucrânia.
A
fome foi tão grande que houve episódios de canibalismo e até de pais,
alucinados pela fome, que matavam filhos pequenos para comer, uma
execração tamanha que até hoje é difícil de ser aceita como um fato
real.
Simultaneamente
à extinção das pequenas aldeias que eram a alma do país, começou o
processo de russificação, origem das populações russas transferidas, ao
longo de décadas, para a Ucrânia. Este é o pretexto mais comum para as
intervenções russas decretadas por Putin. Na Crimeia, por exemplo, a
anexação de 2014 foi bem recebida por uma população que é 65% de origem
russa.
Curiosamente,
a Ucrânia não é um país menor que se descola de uma nação maior. Ao
contrário, foi a Rússia que “nasceu” da Ucrânia, com o deslocamento ou a
conversão ao cristianismo de eslavos que deram origem ao Grão-Ducado de
Moscou.
Putin
gosta de dizer que Rússia e Ucrânia nasceram na mesma pia batismal em
que foi convertido o príncipe Vladimir de Kiev, no ano 988.
No
ano passado, ele escreveu um ensaio intitulado “Sobre a Unidade
Histórica de Russos e Ucranianos”. Obviamente foi contestado por
historiadores que discordam dessa unidade e veem no artigo, com razão,
um disfarce intelectual para o neo-imperialismo de Putin.
Muitos
argumentos de Putin estão sendo repetidos por figuras da direita
não-tradicional americana, que martelam uma pergunta unânime: por que os
Estados Unidos se arriscariam a um conflito, mesmo com Joe Biden já
tendo descartado a via bélica, por causa de um país que, em termos de
íngua, religião, origem nacional e esfera geopolítica, tem muito mais a
ver com a Rússia do que com o mundo ocidental?
Além
de ser perversa, por negar aos ucranianos o direito à autodeterminação,
a pergunta ignora não só os interesses americanos em não deixar
desmanchar a ordem pós-fim da Guerra Fria como as complexidades de um
país tão longe de Deus e tão perto da Rússia – uma paródia, no caso, da
relação entre México e Estados Unidos.
Com
as fronteiras alteradas, ao longo de séculos, por vizinhos mais fortes
como a Polônia, o Império Austro-Húngaro, a Alemanha nazista e o império
russo, na sua versão monárquica ou soviética, a Ucrânia teve apenas um
intervalo, o atual, de independência real. Hitler queria escravizar a
Ucrânia, tomar seus recursos naturais e eventualmente substituir toda a
sua população por alemães da raça superior (um propósito estendido a
todos os povos eslavos).
Ironicamente,
em nome dos arrependimentos pelos crimes nazistas, a Alemanha
contemporânea não deixa outros países enviar, por seu território,
armamentos para reforçar a resistência ucraniana no caso de uma invasão
russa.
Diante
de forças dez vezes mais poderosas, seria uma oposição tristemente
fadada ao fracasso, um assunto em que o país tem experiência – poucos
sabem que, depois do fim da II Guerra, bolsões de resistência
continuaram a lutar durante anos contra forças soviéticas.
Se
esta invasão vai acontecer ainda é uma questão altamente sujeita a
dúvidas. Mas a Ucrânia já está descobrindo, mais uma vez, que está
sozinha?
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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