O antropólogo Antonio Risério, cuja cabeça foi pedida pelo identitarismo racialista, escreve um texto "fim de papo" em em seu Facebook (a propósito da ultrapassada noção de "raça", sempre lembro outro baiano, João Ubaldo: quem tem raça é cachorro):
Não
há conversa possível com sacerdotes e fiéis da novel religião
identitária. A elite letrada neonegra mal acaba de rabiscar suas “teses”
altamente discutíveis e logo as converte em dogmas irretocáveis. Exigem
imunidade ao questionamento, foro privilegiado da ideologia. Ou seja:
não escrevem textos, mas tábuas da lei. Se alguém discorda, é racista.
A
tríade identitária em vigor é esta: xingar, intimidar, silenciar.
Discutir, incrementar o debate público, de modo algum. Para quem é dono
da verdade, discussão alguma interessa. É pedra no caminho da realização
da suposta felicidade social. Mas, feliz ou infelizmente, nem todos
pensamos a mesma coisa, nem rezamos pela mesma cartilha. Logo ao
primeiro ataque desferido, avisei: não esperem de mim o papelão de Lilia
Beyoncé Schwarcz, branquinha cheia de culpa, suplicando perdão.
E
a primeira coisa que vi: regra geral, quem atacava, simplesmente não
tinha lido o que escrevi. Basta dizer que todos deram de barato que eu
tinha escrito sobre essa bobagem de “racismo reverso”. Até a eterna
presidenciável Marina Silva, a menos que, além de costumar se equivocar
na interpretação do Brasil, esteja agora também com problemas de
interpretação de texto. Não, Marina não leu, mas tuitou categórica sobre
o assunto, com aquela típica soberba que tantas vezes se oculta sob o
manto da humildade cristã. Mas não é a única a não querer contrariar
neonegros. Com a preocupação de manter ou ampliar seu raio de ação,
diante das eleições deste ano, partidos “progressistas” evitam qualquer
debate. Querem quadros – e votos. Nossos partidos “soi disant” de
esquerda, hoje, estão muito mais para o Magazine Luíza do que para
Leonel Brizola – esta é a verdade.
Mas
vejamos a tríade sagrada do racialismo. Em “O Emplastro Estrutural”, o
escritor Gustavo Nogy (além de dizer que cometi uma indiscrição
imperdoável para o debate público: ter debatido publicamente) foi a um
dos pontos: “...suspeitar de uma das elaborações possíveis sobre o
racismo – o que é o ‘racismo estrutural’ senão uma das elaborações
possíveis sobre o racismo? – não é suspeitar da realidade do racismo,
assim como questionar a validade epistêmica de uma teoria econômica
sobre a pobreza não é pôr em dúvida a realidade da pobreza ou a fome dos
pobres”. O fundamentalismo fascista quer nos obrigar a crer que sim,
mas o fato é que afirmei a realidade do racismo de uma ponta a outra do
artigo que publiquei.
Lembro,
ainda, que não é de hoje que movimentos negros tentam provar que “todo
mundo” é racista. Muito pelo contrário. O historiador (negro) Joel
Rufino já falava disso há tempos, em “Atrás do Muro da Noite”. Dizia que
a “frustração social” estava na base da movimentação, imprimindo-lhe
uma marca: “os movimentos negros trabalham politicamente o
ressentimento... há como que uma ânsia em arrancar do brasileiro comum a
confissão de que este é racista”. A novidade, daí para cá, é que
passaram a atacar de manada. E vingou a praxe da incultura do
cancelamento – que vem de um traço fundamental do identitarismo: a
intelectofobia. Camille Paglia, num dos textos de Sex, Gender, Feminism,
já teclava: “...as universidades, como a grande mídia, estão
patrulhadas atualmente por uma bem intencionada, mas implacável polícia
do pensamento, tão dogmática quanto os agentes da Inquisição espanhola.
Estamos novamente mergulhados num caos ético onde a intolerância se
fantasia de tolerância e onde a liberdade individual é esmagada pela
tirania do grupo”.
Exigiram,
também, que eu desse exemplos de racismo antibranco de pretos
brasileiros. Não faltam. Racismo contra brancos e mestiços. Posso fazer
uma lista imensa, vindo, por exemplo, do grupo carnavalesco Ilê Aiyê
proibindo ingresso de não-pretos no bloco (em 1974) à recente faixa em
defesa da pureza racial exibida na Avenida Paulista (“miscigenação é
genocídio”), passando pelos tribunais raciais que hoje infestam nosso
sistema educacional, cancelando matrículas de mestiços. Os “pardos”,
para o movimento negro, não passam de massa de manobra. São “incluídos”,
sempre que interessa inflar o “contingente negro” da população – e
“excluídos”, quando o “privilégio preto” é ameaçado.
Anos
atrás, por sinal, em “Genocídio Racial Estatístico”, o historiador José
Murilo de Carvalho já tocava no grão da questão: “Está em andamento no
Brasil uma tentativa de genocídio racial perpetrado com a arma da
estatística. A campanha é liderada por ativistas do movimento negro,
sociólogos, economistas, demógrafos, organizações não-governamentais,
órgãos federais de pesquisa. A tática é muito simples. O IBGE decidiu
desde 1940 que o Brasil se divide racialmente em pretos, brancos,
pardos, amarelos e indígenas. Os genocidas somam pretos e pardos e
decretam que todos são negros, afro-descendentes. Pronto. De uma penada,
ou de uma somada, excluem do mapa demográfico brasileiro toda a
população descendente de indígenas, todos os caboclos e curibocas.
Escravizada e vitimada por práticas genocidas nas mãos de portugueses e
bandeirantes, a população indígena é objeto de um segundo genocídio,
agora estatístico”.
Quando
toco em tais tópicos, costumam me responder dizendo que não entendo que
raça é uma “construção social”. Bem, duas coisas. Primeiro: não penso
em termos de “raça” – como brasileiro, penso em termos de cor. Segundo,
expliquem a um pobre mortal como, desde a invenção da linguagem, poderia
existir alguma coisa que não fosse “construção social”? Nada escapa
disso, como já ensinavam os neokantianos. Não por acaso esse
“construcionismo social” é ridicularizado hoje, mundialmente, por tantos
estudiosos e intelectuais, como agora a socióloga Nathalie Heinich, da
diretoria do Centro Nacional da Pesquisa Científica (França), adversária
do “militantismo acadêmico” identitário, que, no seu entender, descende
do período stalinista da “ciência proletária” e dos “delírios maoístas”
da década de 1970.
“Racismo
estrutural”, sim, mas com o baronato negro ocupando cadeira cativa nos
espaços e horários nobres do país. Com o patrocínio de grande parte do
empresariado. Do “woke capitalism”. E apontando para um tremendo
quiprocó jurídico no caminho. Porque seu desfecho seria, logicamente, a
criação de um código penal para cada “raça”. Claro. A “tese” dessa
malandragem jurídico-ideológica é a seguinte. O racismo não acontece em
plano individual – vem de um sistema de poder, de uma estrutura social.
Como preto é oprimido e não conta com a estrutura a seu favor, está
simplesmente impossibilitado de ser racista (é dessa esperteza que vem a
conversa de “racismo reverso”). Ou seja: preto pode ser racista à
vontade, porque só depois que for derrubada a estrutura capitalista é
que poderá ser responsabilizado pelos crimes que cometer... Para
defender essa tolice, essa abstração confortável, nossos militantes são
obviamente acadêmicos. Querem dar cientificidade à jogada. Mas ninguém
precisa contar com um aparelho estatal para ser racista. Uma gangue que
impõe seu poder numa favela é ilusão de ótica só porque não traz com ela
o aparelho de Estado, a “estrutura”, etc.? Aliás, todas essas
definiçõezinhas de manuais acadêmicos pouco se sustentam na realidade.
Acho hilário quando leio num desses manuais que o Estado detém o
monopólio da coerção organizada, por exemplo. Porque o narcotráfico
arquivou essa “definição” há tempos.
Joel
Pinheiro ridicularizou: “O racismo englobaria o nosso sistema social
como um todo, constituído de uma história escravocrata e erigido numa
estrutura hierárquica que coloca um grupo racial acima de outro e tem
meios para perpetuar essa sujeição. Apenas atos em que essa ordem se
reafirma seriam propriamente racistas. [...] Imagine que alguns
estudiosos da violência propusessem restringir o termo ‘assassinato’
apenas aos casos em que o matador fosse hierarquicamente superior à
vítima. Se um patrão matasse seu empregado, aí sim teríamos um
assassinato. Mas se um vizinho matasse o outro, aí não, teríamos outra
coisa, uma ‘morte violenta premeditada’. Páginas e páginas de discussão
acadêmica seriam gastas para discutir quais casos seriam ou não seriam
‘assassinato’. Mas a realidade dos crimes continuaria a mesma”.
No
entanto, na cartilha do “racismo estrutural”, se o mesmíssimo crime for
cometido por um branco e um preto, o branco terá cometido o crime – o
preto, não. E aí? Teremos dois códigos penais? Ora, racismo é racismo.
Venha de quem vier, de onde vier e quando vier. Mas, como o espaço é
curto, encerro. Lembrando que, pelo que disse aqui e por muito mais,
quando falam para eu não me incomodar com os ataques porque “os cães
ladram e a caravana passa”, respondo que não me incomodo com ataques.
Mas vejo o ditado de outra perspectiva. É a caravana identitária que
passa, incensada e acolhida pelo capitalismo internacional e por
segmentos significativos da classe dominante brasileira. Quem ladra, no
caso, sou eu. E aqui me lembro do velho Manoel da Nóbrega, escrevendo em
meados do século 16, numa de suas Cartas do Brasil: podem ficar
sossegados: “eu ladrarei quanto puder”.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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