Deferência e chá das 5, responde João Carlos Espada em artigo publicado pelo Observador, comentando livro recém-lançado:
1 Vozes
amigas dizem-me que continua entre nós, embora talvez em tom menos
tribal, um intransigente debate sobre se ainda vivemos ou não em
democracia. Uns acusam as chamadas ‘esquerdas’ e o governo de estarem a
sufocar a democracia. Outros acusam as chamadas ‘direitas’ de serem
intrinsecamente contra a democracia.
Receio
ter de dizer que todo esse ‘debate’ exaltado sobre o alegado fim da
democracia me parece difícil de entender. Julgava que tivéssemos
aprendido que a democracia se distingue precisamente pelo debate
tranquilo entre propostas e pontos de vista diferentes. Umas vezes
ganham umas as eleições, outras vezes ganham outras. Mas o livre debate
entre elas pode continuar. O que distingue as ditaduras é a
impossibilidade de debate e de concorrência entre propostas rivais.
2
Depois do 25 de Abril de 1974 e até ao 25 de Novembro de 1975,
falava-se entre nós de ‘fascismo ou revolução’. Por outras palavras, a
prosaica possibilidade de uma pacífica (e ‘boring’ como dizia
elogiosamente Dahrendorf) democracia parlamentar era excluída. Eu
julgava que depois do 25 de Novembro — com Mário Soares, Ramalho Eanes,
Sá Carneiro, Freitas do Amaral e Cavaco Silva, entre outros — tivéssemos
encerrado essas ‘dicotomias infelizes’ (Dahrendorf de novo) próprias do
terceiro-mundo.
Vozes
amigas dizem-me que afinal não encerrámos. Volta a falar-se
abundantemente da ameaça ‘das direitas’ e da ameaça ‘das esquerdas’. A
propósito disto e daquilo, é dito que ‘é preciso outro 25 de Abril’. A
propósito disto e daquilo é recordado o longo conflito entre comunismo e
nacional-socialismo que dominou a Europa continental nos anos
1920-1940: uns para justificar o fascismo por causa da ameaça comunista;
outros para justificar o comunismo por causa da ameaça fascista.
3
Esse conflito entre comunismo e nacional-socialismo terá deixado marcas
profundas — sobretudo em culturas políticas que não querem, ou
simplesmente não sabem como, conhecer outras tradições. Talvez seja
oportuno recordar aos nossos exaltados autores que em Inglaterra (como
se costumava dizer) e na América, para não falar no Canadá, na Austrália
ou na Nova Zelândia, o comunismo e o fascismo nunca tiveram qualquer
credibilidade.
Em
todos esses países, nenhum partido fascista alguma vez conseguiu eleger
um único deputado para um Parlamento nacional. Nos EUA, na Austrália e
na Nova Zelândia, os partidos comunistas nunca elegeram um único
deputado nacional. No Canadá, terão eleito um (Fred Rose, mais tarde
acusado de espiar para a URSS). No Reino Unido, um total de cinco
‘socialistas revolucionários’ foram eleitos para a Câmara dos Comuns:
dois em 1922, um em 1935, dois em 1945. Durante todo esse período, o
Parlamento britânico teve sempre mais de 600 deputados.
Ainda
segundo a mesma fonte (Daniel Hannan, How We Invented Freedom & Why
It Matters, 2013), o partido comunista britânico teve no máximo 60 mil
inscritos; o francês atingiu 800 mil e o italiano 1,7 milhões.
Por
outras palavras, em vez de insistirmos em limitar os nossos horizontes
intelectuais à triste dicotomia continental e ibérica entre
autoritarismos rivais, talvez fosse intelectualmente mais estimulante
investigar por que motivo essa dicotomia esteve ausente entre os povos
de língua inglesa.
4
É realmente um mistério e não creio que tenha sido inteiramente
decifrado. Winston Churchill, por exemplo, levou 25 anos (durante os
quais 5 a liderar o Governo na II Guerra) a escrever um livro em 4
volumes sobre a História dos Povos de Língua Inglesa (finalmente
publicados entre 1956 e 1958). Há aí sem dúvida inúmeros contributos.
Mas não creio que tenha decifrado o mistério — em boa verdade, também
não creio que tenha tentado.
Um
livro recente (Political Deference in a Democratic Age, Palgrave, 2021)
de uma autora francesa — Catherine Marshall — propõe uma hipótese
intrigante, ainda que não totalmente inesperada. Diz ela que a
“deferência” dos britânicos para com regras gerais de boa conduta e de
cortesia — por contraste com a obediência de outras culturas a ordens
particulares de comando — foi um dos factores cruciais da estabilidade
da democracia parlamentar britânica desde 1688.
Essa
deferência por regras gerais de boa conduta e de cortesia (bem como de
pontualidade) teria protegido os povos de língua inglesa das tendências
sectárias que levam grupos particulares de todo o tipo — famílias,
grupos étnicos ou/e grupos de interesses, partidos políticos, e outros —
a acharem normal adoptar entre si condutas que não aceitariam nos
outros. (Por exemplo, estacionar em segunda fila).
Por
outras palavras, em vez da preferência tribal por interesses ou
instintos de grupos particulares, haveria na cultura política de língua
inglesa uma deferência tranquila por instituições imparciais e por
regras de “fair-play”. Alguns autores — como Adam Smith, Edmund Burke,
Alexis de Tocqueville, Karl Popper ou Gertrude Himmelfarb — também
chamaram à deferência de Catherine Marshall “gentlemanship”, ou civismo,
ou, simplesmente, boa educação.
5
Não sei se a tese de Catherine Marshall e de todos esses autores ainda
será válida hoje em dia. Seguramente, a virtude cívica da ‘deferência’
não foi ainda partilhada com as claques inglesas de futebol… E os
meninos “woke”, que andam a demolir estátuas e a perseguir quem não
subscreve os seus pontos de vista, seguramente também não partilham as
virtudes da ‘deferência’.
Mas
o que mais me preocupa é que as ancestrais regras do chá das 5 estejam a
sofrer drásticas, quase revolucionárias, alterações. A revista
“Spectator” de Londres acaba de dedicar uma intensa página ao tema
(“Cake expectations: Afternoon tea has gone OTT”, p. 28). E o tema é sem
dúvida da maior gravidade. Urge tomar medidas. Antes que seja tarde e a
democracia fique em perigo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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