O Informante
Sou
daqueles que apreciam rever bons filmes. Às vezes é um porto mais
seguro do que assistir a novos, com qualidade ainda não testada. Então,
quando o tempo permite, revejo algumas películas cinematográficas das
quais guardo boas lembranças. Pude revê-las graças à proliferação do
streaming que tem feito as vezes das antigas videolocadoras, nem sempre
com um acervo tão rico.
Recordo-me,
para este artigo, do filme “O Informante”, de 1999, dirigido por
Michael Mann e estrelado por Al Pacino e Russell Crowe, então um ator em
franca ascensão. A qualidade do filme é ilustrada por ter sido ele
nomeado para sete prêmios do Oscar, embora não tenha ganhado nenhum.
O
filme é baseado em uma história real. Jeffery Wingand, representado por
Crowe, é um executivo da indústria de cigarros que revelou que as
empresas de tabaco haviam atuado deliberadamente para tornar os seus
produtos mais viciantes para o consumidor. Após uma série de incidentes,
ele decidiu levar a história a público, inclusive pela imprensa. Com
isso, ele e o jornalista que o procurou, Lowell Bergman, passam a
enfrentar diversos desafios para conseguir o seu intento, incluindo
retaliações contra eles e pressões contra veículos de informação.
Talvez
tenha sido a partir deste filme que tive melhor percepção das agruras
sofridas pelos assim chamados whistleblowers. São eles pessoas comuns
que, dentro de estruturas governamentais ou corporativas, resolvem,
conforme a tradução literal, “soprar o apito”, ou seja, denunciar
fraudes ou outros crimes corporativos que, não fossem as suas ações,
permaneceriam encobertos.
Casos
famosos de whistleblowers são conhecidos mundialmente. Daniel Ellsberg,
no caso denominado “Papéis do Pentágono, revelou análises de
inteligência confidenciais acerca da Guerra no Vietnã. Sherron Watkins
denunciou a contabilidade criativa da Enron. Cynthia Cooper fez
revelações semelhantes sobre a Worldcom. O whistleblower não é um
delator, pois ele usualmente não está envolvido em qualquer crime. É
como um informante do bem. Ainda assim, muitos sofrem a pecha de
dedo-duros ou de traidores, como se guardar segredos sobre fraudes ou
crimes fosse algo positivo. Não raramente, eles são alvo de retaliações,
às vezes até físicas, embora ataques jurídicos e morais sejam mais
comuns. “O Informante” revela bem as dificuldades sofridas pelos
whistleblowers.
Pelo
papel importante que exercem, já que crimes ou fraudes praticados no
âmbito de organizações públicas ou corporativas complexas não raramente
permanecem escondidos salvo se alguém de dentro se dispuser a
revelá-las, há uma tendência mundial na edição de leis de proteção aos
whistleblowers, por exemplo, proibindo a sua demissão arbitrária pelo
empregador denunciado. Alguns países, como os Estados Unidos, foram
ainda além. Diante dos dissabores sofridos pelos whistleblowers, foram
criados programas que preveem recompensas financeiras significativas
para eles, normalmente calculadas em percentual dos valores recuperados
através da denúncia ou das multas aplicadas aos infratores. Há quem
critique programas de recompensa, mas, em linhas gerais, eles são
justificados diante das retaliações impostas aos whistleblower, bem como
pelo interesse público nas revelações por ele efetuadas.
No
Brasil, a Lei 13.608/2018 contém medidas de proteção aos informantes do
bem no âmbito da administração pública. Ela foi aperfeiçoada pela Lei
13.964/2019, originada do projeto de lei anticrime. Entre as medidas, o
direito de preservação da identidade do informante – ela só pode ser
revelada com o seu consentimento -, a proibição de demissão arbitrária,
de alteração de funções ou de atribuições, de retirada de benefícios, ou
de negativa de fornecimento de referências profissionais positivas.
Ainda foi previsto que a prática de retaliação contra o informante
sujeitaria o infrator à demissão a bem do serviço público. Seguindo
ainda o modelo norte-americano, consta a previsão de pagamento de
recompensa ao informante de até cinco por cento do valor recuperado aos
cofres públicos. Apesar da relevante inovação legislativa, há,
aparentemente, na administração pública um esquecimento quanto à
implementação da lei, especialmente no que diz respeito às recompensas
financeiras.
O
tema ganhou importância recentemente após um servidor do Ministério da
Saúde ter vindo a público para denunciar irregularidades na aquisição de
vacinas contra a Covid. O servidor teria se recusado a assinar atos
necessários para a consumação de uma compra com características
suspeitas e, por esse motivo, teria sofrido ameaças de retaliação dentro
da estrutura administrativa. Tudo deve ser apurado com o rigor
necessário. De todo modo, a legislação brasileira já proíbe
categoricamente qualquer espécie de retaliação jurídica contra um
servidor público que, audaciosamente, resolva denunciar indícios de
crimes ou fraudes praticados no âmbito da administração pública. Não só
proíbe a retaliação como sujeita o infrator, se ele for agente público, à
demissão a bem do serviço público. Esses instrumentos precisam ser
melhor conhecidos e manejados para o bem de todos. A sociedade precisa
contar com aqueles que estejam dispostos a fazer a coisa certa mesmo
sabendo dos custos e sacrifícios pessoais. Nosso dever mínimo é, então, o
de protegê-los das retaliações que virão. A virtude precisa ser
protegida e, até mesmo, recompensada.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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