Numa briga de galos, ninguém animal sai ileso, adverte Paulo Polzonoff em sua crônica publicada pela Gazeta do Povo:
A
semana passada terminou com mais uma troca de farpas entre o presidente
Jair Bolsonaro e o STF, na figura do ministro Luís Roberto Barroso. De
um lado, Bolsonaro (não sei se por incapacidade retórica ou por uma
genialidade inacessível no xadrez 4D da política) disse que não haverá
eleições em 2022 se não for totalmente descartada a hipótese de fraude
e, como um hipopótamo numa loja de cristais, chamou Barroso de
“imbecil”. Do outro, Barroso acusou o presidente de crime de
responsabilidade, passível de impeachment.
Como
sempre, houve gritos de “inaceitável!”, “intolerável” e “inadmissível!”
– tanto para a fala ameaçadora de Bolsonaro quanto para a sentença
precoce de Barroso. A tal ponto que, na noite de sexta, me pus a
perguntar para os amigos se eles achavam que, nessas condições, haveria
uma saída democrática para o caso de um processo de impeachment ou de
uma derrota de Jair Bolsonaro nas eleições de 2022. Ou para o caso de o
STF assumir de vez que é ele quem manda no país.
Aí
me dei conta desse processo já antigo de aceitação do inaceitável, de
tolerância do intolerável, de admissão do inadmissível. Quando isso teve
início? Terá sido com a estratégia maquiavélica do PT, segundo a qual
vale tudo e qualquer coisa para se alcançar o poder? Terá sido antes, no
Pleistoceno? Terá sido com a atual retórica de confronto de Jair
Bolsonaro? Ou será que começou justamente quando dizer que algo é
inaceitável, intolerável e inadmissível se transformou, por força da
lei, em crime de ódio?
(Em
tempo: levando em conta os personagens que ainda atuam em Brasília,
localizo o momento “exato” em que o inaceitável, intolerável e
inadmissível passou a ser aceito, tolerado e admitido naqueles embates
constrangedores entre os ministros do Supremo Tribunal Federal, no meio
do julgamento do Mensalão. Lembro-me perfeitamente de estar assistindo
àquele espetáculo e pensar: “alguma coisa se quebrou aqui”. Mas essa é
uma visão muito particular minha).
Quem
quer que tenha começado essa briga no parquinho, o fato é que ela
corroeu para sempre os alicerces da nossa democracia-de-palafita. Quero
dizer, sei que o para sempre sempre acaba, como dizia o compositor
chato, mas enquanto isso o estrago estará feito. Não é à toa que tanta
gente tenha começado a temer que esteja em curso um processo
revolucionário à direita ou à esquerda. Quem planta o inaceitável, colhe
o inacreditável.
Quando
se passa a aceitar o inaceitável, tolerar o intolerável e admitir o
inadmissível, instaura-se um regime de força incapaz de esconder os
caninos, por mais que eles estejam por trás da focinheira das belas
palavras que sustentam o Estado de Direito. Nesse regime de força, quem
manda é a retórica, cujo objetivo não é nem tanto ocupar temporariamente
o poder, e sim roubar do homem comum a alma, a capacidade de confiança
e, no extremo, até seu senso de realidade.
É
o que vemos hoje em dia, por mais inacreditável que pareça. Por
preguiça ou descuido, não sei, tornamos aceitáveis, toleráveis e
admissíveis argumentos para os quais, anteriormente, havia um limite
claro, baseado não na lei, e sim na honra. E, assim, transformamos
qualquer discurso panfletário mal disfarçado em arma retórica válida,
como se a mentalidade panfletista não se resumisse sempre a uma paixão
irracional por uma causa imoral qualquer.
Esta
não é, repito, uma marca do nosso tempo. Só temos o azar de vivermos na
foz desse rio que nasce lá nas montanhas da ignorância e da arrogância
de nossos antepassados. Resta saber o que faremos daqui por diante.
Insistiremos em lutar contra o que julgamos mau usando as armas
determinadas pelo próprio diabo? Seguiremos derramando gasolina no circo
em chamas? Ou será que, milagrosamente, alguém um dia conseguirá expor o
caráter inaceitável, intolerável e inadmissivelmente suicida da chamada
guerra cultural?
E,
só porque não quero terminar o texto com ponto de interrogação, digo
que o inacreditável pode ser mágico e fascinante, mas também pode ser
uma perversão diabólica da realidade, daquelas que sempre acabam com
alguém de joelhos, sentindo na nuca o cano frio do fuzil inimigo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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