Ao anunciar o contubérnio com o mesmo Centrão que ele tanto demonizou, o presidente Jair Bolsonaro reconheceu: “As coisas mudam”. E como. Editorial do Estadão:
Não
faz muito tempo, mas parece uma eternidade. Na convenção em que o PSL
confirmou a candidatura de Jair Bolsonaro à Presidência, em 22 de julho
de 2018, o general da reserva Augusto Heleno, hoje ministro e um dos
principais conselheiros do presidente, trocou a palavra “ladrão” por
“Centrão” numa música que cantarolou, para delírio dos bolsonaristas. E,
para que não restasse dúvida sobre sua escrachada insinuação, Heleno
emendou: “O Centrão é a materialização da impunidade”.
Exatos
três anos depois, Bolsonaro informou que pretende dar a Casa Civil, que
comanda o funcionamento do governo, para um dos principais líderes do
Centrão, o senador Ciro Nogueira (PP-PI). Não se tem notícia de que o
ministro Augusto Heleno tenha feito algum comentário, debochado ou
sério, a respeito desse anúncio.
Mas
o vice-presidente Hamilton Mourão fez. Disse, com razão, que alguns
eleitores de Bolsonaro “podem se sentir um pouco confundidos” depois que
viram o presidente, o mesmo que elegeram com a retumbante promessa de
enterrar o toma lá dá cá, franquear o coração do governo ao grupo
político conhecido exatamente por mercadejar seus votos.
“É
dando que se recebe”, parte da Oração de São Francisco, tornou-se em
1988 a máxima do Centrão, na desavergonhada tirada de um de seus
fundadores, o deputado Roberto Cardoso Alves (1927-1996), o Robertão. Na
época, o Centrão, que ainda engatinhava, vendia seus serviços ao
presidente José Sarney, que precisava de votos para emplacar o mandato
presidencial de cinco anos. Sarney conseguiu o que queria, ao preço de
cargos em todos os escalões para apadrinhados de parlamentares de
baixíssima extração. O próprio Robertão virou ministro. “Cargo dá voto
para diabo”, comentaria mais tarde o patriarca do Centrão, com sua
cândida sinceridade.
É
esse o espírito da coisa. Bolsonaro e os donatários de seu governo
certamente vão tentar dourar a pílula, alardeando que o arranjo
permitirá aprovar com mais facilidade os projetos de interesse do País,
mas a verdade é que o único projeto que interessa ao presidente é
manter-se no cargo, enquanto o único projeto que interessa ao Centrão é
expandir sua capacidade de parasitar o Estado. Nasceram um para o outro.
“Eu
sou do Centrão. Eu nasci de lá”, disse Bolsonaro, confessando o que
somente os eleitores incautos não sabiam. No início do mandato, o
presidente até parecia interessado em cumprir a promessa de que
escolheria para seu Ministério apenas os mais capacitados, sem trocar
cargos por apoio político. No entanto, desprovido de qualquer
qualificação para presidir o País e vocacionado somente para a baderna,
Bolsonaro rapidamente perdeu o capital político amealhado na eleição e
se tornou refém dos políticos que farejam oportunidades em governos
fracos.
Na
mesma ocasião em que se declarou um rebento do Centrão, Bolsonaro
argumentou que “não tem como governar” sem aquele bloco político. Disso
sabem bem todos os antecessores de Bolsonaro, que tiveram de negociar o
apoio do Centrão em variadas escalas – e muitas vezes por meio de
corrupção deslavada, como no mensalão e no petrolão, durante o
mandarinato lulopetista. Mas nem mesmo nos governos do PT o Centrão
havia conseguido fincar sua bandeira na poderosa Casa Civil, como deve
acontecer agora. Portanto, o gesto de Bolsonaro, embora ele diga que
visa à governabilidade, é, na verdade, uma capitulação.
Quando
ainda era candidato, em 2017, Bolsonaro prometeu governar “sem o toma
lá dá cá” e, caso isso não fosse possível, então “eu tô fora”. Já como
presidente, em março de 2019, declarou que a corrupção nos governos
anteriores foi provocada pelos “acordos políticos em nome da
governabilidade”. Em abril de 2020, anunciou, aos berros: “Não queremos
negociar nada. Acabou a época da patifaria, agora é o povo no poder”.
Bastou
um ano para que Bolsonaro afinal se rendesse às evidências de que não
pode mais contar com o “povo” para sobreviver no cargo. Assim, ao
anunciar o contubérnio com o mesmo Centrão que ele tanto demonizou, o
presidente reconheceu: “As coisas mudam”. E como.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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