Quem não conheceu a vida analógica está mais desarmado para a vida virtual, na qual nossas convicções são apenas reforçadas. João Pereira Coutinho, via FSP:
Nunca olhei para as redes sociais como o Quinto Cavaleiro do Apocalipse. Ingenuidade minha, talvez. Ou sorte.
A
primeira vez que usei a internet tinha 22 anos. Quando conto isso a
certos auditórios púberes, eles riem na minha cara. Como era viver nas
cavernas, sem WhatsApp ou Facebook? Era horrível, gente. Uma pessoa
acordava, vivia a sua vida com outra paz de espírito e, na maioria dos
casos, não tinha uma conta do psiquiatra para pagar.
Depois,
quando a internet chegou, tratei do fenômeno de forma puramente
instrumental: era um meio para, não uma forma de vida em si. Exemplo: o
Google é perfeito quando sabemos o que pesquisar. Mas jamais me passaria
pela cabeça levar a sério todos os gatafunhos que aparecem na rede como
se fossem as tábuas da lei. O ceticismo, que é estimável em qualquer
área da vida, é imprescindível na selva virtual.
O
mesmo vale para os anúncios personalizados. Os gigantes tecnológicos
vendem o meu perfil para que os anunciantes possam tentar-me com uma
precisão mefistofélica? Admito que sim. Em certos casos, até agradeço:
da música ao cinema, da literatura aos lugares, são incontáveis as
descobertas que fiz porque alguém as fez por mim.
Quem não conheceu a vida analógica está mais desarmado para a vida virtual
Mas
recuso o fatalismo tecnológico de quem acha que somos puras marionetes
das redes sociais, sem autonomia ou controle. Não somos. Não sou. A
última palavra será sempre a minha.
Tive
sorte, definitivamente. A minha geração também. Mas que dizer da
geração pós-1996 – a geração Z, na linguagem dos especialistas –, que
nasceu, cresceu e irá envelhecer e morrer olhando para a tela do
celular?
Esse
é o grande mérito de O Dilema das Redes, o documentário do momento na
Netflix: quem não conheceu a vida analógica está mais desarmado para a
vida virtual. Isso é particularmente chocante em questões de verdade e
mentira, talvez a grande observação do documentário.
Sim,
as redes viciam; exploram as preferências dos usuários; arruinam a
sanidade deles com imagens inatingíveis de perfeição. Sem falar dos
likes que brincam com a autoestima da espécie em uma escala literalmente
planetária: como afirma um dos tecnossábios entrevistados no filme,
todos precisamos da aprovação dos outros, mas não de milhares de outros,
de cinco em cinco minutos.
Mas
o problema principal está na forma como as redes aprofundam e
cristalizam a nossa ignorância. Exemplo: se acreditamos que a Terra é
plana, seremos encaminhados para a ala do manicômio onde existem outros
malucos como nós. O que significa que as nossas convicções nunca são
testadas ou contestadas, são apenas reforçadas.
Se
isso é cômico em matéria geofísica (eu gosto dos terraplanistas e me
divirto com eles), é menos cômico em matéria política. Esquerda e
direita sempre existiram na política moderna; e a diversidade de
opiniões é a maior proeza das democracias liberais e pluralistas.
As
mídias sociais reatualizam o velho problema do relativismo: se não
existe a verdade, mas apenas a minha verdade mil vezes reforçada, isso
me autoriza a usar a força bruta para converter os incréus
Mas,
para que essas democracias funcionem, é preciso que os participantes do
jogo democrático aceitem previamente uma verdade, ou um conjunto de
verdades, que é exterior e objetiva. Eu posso preferir a liberdade sobre
a igualdade (ou vice-versa). Mas convém que, antes do debate, os
diferentes participantes aceitem a validade da democracia, ou da
decência, ou da honestidade, ou da racionalidade, como alicerces de
qualquer sociedade civilizada. Quando não existe esse consenso mínimo,
tudo é violência e gritaria, com os diferentes símios a tentarem esmagar
o crânio do inimigo.
No
fundo, as mídias sociais reatualizam o velho problema do relativismo:
se não existe a verdade, mas apenas a minha verdade mil vezes reforçada,
isso me autoriza a usar a força bruta para converter os incréus.
Haverá
saída para este labirinto? Há: a internet é um faroeste e, como
aconteceu com o próprio faroeste, a regulação e a lei acabarão por
chegar a esse território selvagem. O combate ao anonimato, por exemplo, é
uma das mais importantes batalhas.
Mas
as leis não resolvem tudo. É preciso que os usuários, sobretudo os mais
jovens, aprendam a sair do aquário e a respirar fora dele. Isso implica
que noções arcaicas de conhecimento e reflexão – ler livros, escutar
especialistas, estudar, viver “cá fora” – são hoje mais importantes do
que nunca. Não apenas porque nos tornam melhores; mas porque nos tornam
mais vigilantes e menos otários perante a última vigarice do feed de
notícias.
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