Como o blogueiro costuma dizer, a história é um labirinto e, por isso
mesmo, ninguém sabe onde fica a saída. Falar em fim da história, então, é
coisa para arrogantes esquerdistas. A propósito, segue texto de David
Byrne, traduzido para a Gazeta:
O conceito de “fim da história” — a crença de que haverá um fim no
progresso político, intelectual e social — é uma ideia poderosa que
influencia todo o pensamento secular contemporâneo. A ampliação dos
direitos dos homossexuais, a ascensão da saúde pública e a consciência
ambiental têm levado os “progressistas” a imaginarem uma “Era
Iluminista” na qual os norte-americanos reconhecerão a “verdade” dos
valores esquerdistas. Os progressistas seculares contemporâneos imaginam
um dia, no fim da história, em que seus valores triunfarão em todas as
camadas sociais e intelectuais, e até mesmo nos bastiões mais
conservadores.
Essa ideia de que a história se move numa direção previsível tem sua
origem na Bíblia. O Livro de Isaías está cheio de profecias sobre o fim
dos dias, quando Israel e seus valores monoteístas reinariam sobre um
Egito arruinado. O profeta Daniel prevê a vitória de Cristo e os mil
anos seguintes, influenciando cristãos posteriores como João, que
escreveu o Apocalipse. O livro interpreta o fim da história como uma
luta épica entre o bem e o mal que culminaria no Reino dos Santos. Isso,
por sua vez, moldou a mentalidade do mais importante filósofo cristão a
descrever o fim da história, Santo Agostinho.
Agostinho foi o primeiro pensador a propor uma ampla filosofia linear
da história. Tudo começa com a criação do Universo por Deus e termina
com a volta de Jesus e o Juízo Final. Essas ideias se espalharam pela
cultura ocidental durante mil anos. Até mesmo o maior cientista da
história, Isaac Newton, dedicou grande parte de seu intelecto a estudar o
Livro de Daniel tentando determinar quando Jesus voltaria.
A ascensão da filosofia secular nos séculos XVIII e XIX não excluiu a
ideia do fim da história. Como muitas outras ideias cristãs, ela for
envolta numa nova nomenclatura, mas a essência permaneceu intacta. Os
filósofos iluministas, como todos nós, não foram capazes de fugir
completamente à sua herança intelectual. O espiritual se transformou no
material, mas isso é como uma cobra que troca de pele: todas as
diferenças são superficiais. Uma análise mais detida revela uma
continuidade, não uma ruptura. Entre os secularistas, o mundo
antropocêntrico impôs um desafio e de certo modo substituiu o mundo
teocêntrico predominante desde o início da civilização, mas esses novos
profetas ainda adotavam a ideia judaico-cristã de que a história é
linear e um dia chegará ao fim. Só que agora os homens orquestram os
eventos históricos, não Deus.
Os novos profetas do fim da história pregavam a perfeição e o
Paraíso, embora eles fossem despidos de quaisquer origens divinas. O
ateu iluminista La Mattrie, que defendia que a virtude só pode ser
encontrada numa sociedade sem religião, dizia: “Como um século iluminado
como o nosso demonstra (...) só há uma vida e uma felicidade”. A
perfeição tinha deixado de existir na vida após a morte, que foi banida
pelo Iluminismo. Para os secularistas, a perfeição só podia ser
alcançada na vida terrena.
O Marquês de Condorcet é o melhor exemplo disso. Ele descrevia um fim
utópico da história, um mundo guiado pela razão, sem religião
organizada, guerra ou doenças. Condorcet interpretava a história à moda
linear cristã, com um fim determinado. “Nossa esperança para o futuro da
raça humana pode ser resumida em três pontos: a abolição da
desigualdade entre as nações, a defesa da igualdade dentro de cada nação
e a perfeição total da Humanidade”. Isso ocorreria na etapa final da
história, de acordo com Condorcet. O progresso social e intelectual
termina quando os seres humanos passam a viver guiados pela “razão”.
Esses profetas e seus sistemas teleológicos lineares tiveram
continuidade no século XIX, sobretudo com Hegel. Ele interpretava a
história como uma luta entre duas ideias antagônicas, a tese e a
antítese. A luta é resolvida pela formação da síntese, mas contradições
dentro da síntese geram uma nova tese e antítese, e assim por diante.
Esse é o progresso. Por fim, toda a história termina quando o espírito
(geist) alcança o autoconhecimento. A história termina quando o abstrato
e o concreto se unem.
Hegel influenciou dois dos mais importantes teóricos do fim da
história da segunda metade do século XIX, Auguste Comte e Karl Marx. O
materialismo radical deles negava a existência de qualquer geist no
Universo, mas eles mantinham uma interpretação linear e progressista da
história, que um dia chegaria ao fim. Comte interpretava a Humanidade
como algo que deixava de ser guiado pela religião para ser guiado pela
filosofia até o estágio final da história, a era científica ou positiva.
Comte reconhecia que esses estágios— religião, filosofia, ciência —
estão relacionados, porque um evolui a partir do outro. (Igrejas foram
construídas em diversas partes do mundo para promover o que Comte
chamava de “religião da Humanidade”. Seus fiéis a chamam de “religião
secular”). A filosofia da história dele culmina com o triunfo da
ciência. O estágio científico ou positivo quer dizer que a mente é
guiada pela ciência, aproximando-se ao máximo da verdade absoluta. Ele
considerava a sociologia a “rainha de todas as ciências”. Uma sociedade
baseada em princípios científicos é o ponto alto da Humanidade e,
portanto, significa o fim de toda a história intelectual.
O parceiro sociológico de Comte, Karl Marx, deu continuidade à
dialética hegeliana apenas substituindo as ideias pelas classes sociais.
Nenhum pensador influenciou mais a contemporaneidade do que Marx. Assim
como Comte, ele acreditava no progresso inevitável de seus valores.
Toda a história, dizia Marx, era um conflito de classes. Esse conflito é
resolvido pela derrubada inevitável do maléfico sistema capitalista
pelos operários, o que daria origem à nova era do socialismo. Aos
poucos, o Estado desapareceria, abrindo caminho para a era perfeita do
comunismo. Esse fim da história utópico é desprovido de classes ou
religião. Mais uma vez, paradigmas religiosos orientam o pensamento
secular. O Paraíso se manifestará neste mundo, e não no próximo.
A mais radical profecia do fim da história em tempos recentes surgiu
quando Francis Fukuyama proclamou, em seu O Fim da História e o Último
Homem, que a democracia liberal tinha triunfado e que a história se
manifestaria por meio da ampliação dos valores liberais e democráticos. O
dr. Fukuyama, assim como Marx, reconhecia explicitamente sua dívida
para com Hegel abrindo o livro com um chamado para um retorno à
filosofia da história de Hegel, na qual a história evolui linearmente e
corresponde ao progresso. A experiência comunista havia fracassado no
Leste Europeu e as ideologias fascista e nazista tampouco tiveram
sucesso. Ele dizia que a democracia liberal (e não o socialismo
marxista) tinha vencido e que a história era apenas o advento dos
valores liberais e democráticos, ou seja, eleições livres, parlamentos,
direitos iguais, capitalismo (ou alguma forma disso), constituições,
liberdade de expressão e de religião. Os que negam esses valores vão
contra a história. Alguns conservadores atuais, às vezes chamados de
neoconservadores, adotaram essa visão de mundo. É possível ver isso na
forma como os valores democráticos e liberais chegaram a lugares como o
Iraque e Afeganistão.
É cedo demais para avaliar a importância das teorias de Fukuyama, mas
Condorcet, Comte e Marx influenciaram profundamente a forma de pensar
dos progressistas seculares do século XXI assim como Daniel, Santo
Agostinho e João influenciaram os cristãos, com uma notável diferença:
no caso dos seculares, é o homem que põe fim à história, não Deus. A
história ainda se move de maneira linear que culmina com um Paraíso
final, mas o abandono da vida após a morte significa que a perfeição
deve ser alcançada na Terra, nesta vida. O desprezo pelo lado espiritual
significa que novas utopias surgirem no mundo material, criadas pelos
progressistas e seus valores.
Mas este fim da história secular e construído pelo homem jamais se
concretizará por vários motivos. Quero enfatizar que qualquer fim da
história criado pelo homem é impossível simplesmente porque ele exigiria
que os intelectuais e as massas entrassem em acordo. E isso é
impossível porque os intelectuais precisam se diferenciar das massas a
fim de terem uma identidade, assim como modelos precisam todas usar
roupas diferentes. Toda sociedade precisa de um grupo de pensadores que
se definem como tal, mas como pode existir pensamento independente
quando todos adotam os mesmos valores? Se uma ideologia triunfar
completamente, por que precisaríamos de intelectuais encorajando os
outros a pensarem diferente e avaliar criticamente a sociedade? Um clima
intelectual uniforme inviabiliza a existência dos intelectuais. O dr.
Fukuyama afirma a existência de um Último Homem, mas o intelectual,
praticamente por definição, não pode ser o “Último Homem”. Neste
contexto, o Último Homem proposto por Nietzsche é a antítese do
ubermensch, o super-homem que não se deixa restringir pela moral. O
intelectual nunca pode ser mundano.
Deus deu à Humanidade o livre-arbítrio e todos o exercemos de uma
forma ou de outra. O intelectual usa seu livre-arbítrio para examinar
criticamente o mundo ao seu redor. Uma coisa une os intelectuais: eles
criticam as sociedades de que fazem parte. Na verdade, parece que,
independentemente da sociedade de que fazem parte, os intelectuais
condenam o status quo. No auge da Guerra Fria, intelectuais
norte-americanos como Horkheimer, Adorno, Chomsky e Zinn criticavam o
consumismo, enquanto os intelectuais soviéticos, os dissidentes,
criticavam o socialismo, a sociedade economicamente mais igualitária que
o mundo contemporâneo já viu. Assim, apesar da vitória do capitalismo
ocidental sobre o socialismo soviético, apesar de o capitalismo se
tornar o sistema econômico dominante em seu tempo, as vozes mais
críticas ao sistema são as dos intelectuais. Eles devem usar seus
talentos para criar um mundo novo e maravilhoso, uma Nova Jerusalém. O
mundo existente nunca basta. Mesmo que os valores progressistas tomem
conta do mundo, chegará uma hora em que os intelectuais os abandonarão
para defender algo novo. De outra forma, eles serão iguais às massas.
A necessidade dos intelectuais de se diferenciarem das massas é tão
grande que às vezes eles têm de se destacar de seus pares. Pierre
Bourdieu, por exemplo, que o New York Times certa vez chamou de o mais
influente intelectual francês, admitia ter flertado com o
anti-intelectualismo e temia fazer parte da classe intelectual que
criticava. Depois de conquistar um cargo na Universidade de Paris, a
tradição exigia que ele fizesse um discurso inaugural para os
professores e outros intelectuais importantes, como Claude Levi-Strauss e
Michael Foucault. Qual foi o tema de Bourdieu? Uma crítica aos
discursos inaugurais.
Bourdieu gostava de contrariar, assim como Rousseau no século XVIII e
Nietzsche no século XIX. Enquanto os filósofos do século XVIII
enfatizavam a razão e endeusavam Newton, Rousseau enfatizava a emoção e
se perguntava se a ciência tinha mesmo melhorado a Humanidade. Ele
lançou uma ofensiva contra sua irmandade iluminista que contribuiu para o
florescimento do romantismo alemão e luminares como Kant, Hegel, Marx e
Schopenhauer. Seus sistemas metafísicos complexos, por sua vez,
despertaram a contrariedade em Nietzsche: ele negava a validade de
qualquer sistema e desafiava o discurso filosófico tradicional
escrevendo na forma de aforismos. Ele refutava a ênfase iluminista dada à
razão. Essas ideias moldaram o pensamento de outros críticos sociais
como Horkheimer e Adorno. Em outras palavras, os intelectuais e seus
valores jamais podem governar a sociedade porque haveria uma guerra
civil entre eles.
A visão cristã alerta para a existência de falsos profetas, aqueles
que nos prometem virtudes sem Deus. Somente Deus pode impedir o
progresso político, social e intelectual. Se a história segue mesmo
alguma lei, deve ser a Lei de Deus, porque milhares de anos de história
humana não relevaram nenhuma lei humana incontestável, e sim apenas
pessoas que acham que encontraram essas leis. Não pode haver um fim da
história criado pelo homem porque não há valores permanentes criados
pelo homem. Uma das lições que a história ensina é da transformação e a
imprevisibilidade, e não da permanência. Um estudo da história
intelectual desde o surgimento da civilização mostra que a mentalidade
da classe intelectual está sempre mudando. Por que deveríamos pressupor
que essa tendência chegará ao fim?
Acreditar em valores atemporais é algo que pode causar prazer, mas
que fracassa em sua intenção de dar origem ao pensamento racional e
criar perspectiva histórica. Aqueles que desejam a perfeição mundana e
qualquer tipo de fim da história buscam isso em vão.
David Byrne é PhD em história intelectual pela Claremont Graduate University.
© 2020 The Imaginative Conservative.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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