Desconfio fortemente que o aplauso das pessoas na janela e na sacada é,
na verdade, para si mesmas. “Veja como sou generoso”. Theodore
Darlrymple, via revista Oeste:
Toda noite, às 8, as pessoas vão até sua janela ou sacada em Paris,
onde estou fazendo meu confinamento durante esta grande epidemia, para
aplaudir os funcionários dos hospitais que, pondo em risco a si mesmos,
estão tratando os pacientes da doença. O gesto me irrita — talvez não
profundamente, mas um pouco. Por quê?
Para mim, parece kitsch ou sentimental. Sentimentalismo, disse Oscar
Wilde, é desejar ter o luxo de uma emoção sem pagar por isso. As pessoas
aplaudindo os profissionais de saúde de sua janela querem sentir que
estão expressando sua gratidão sem ter de pagar nada, tangível ou não,
por isso. A gratidão deve ser expressa para os indivíduos a quem ela é
devida pessoalmente ou com algum custo para aquele que a está
expressando, por exemplo, contribuindo com fundos para soldados feridos
depois de uma guerra justa. Aplausos enviados pelos ares são como uma
mensagem dentro de uma garrafa lançada no oceano. Não significam nada.
Existem outras razões pelas quais eu não gosto do gesto. Ele me
parece uma forma leve de bullying. Se você não participa do aplauso,
significa que não aprecia ou não valoriza de fato o trabalho das pessoas
nos hospitais? Você é ingrato em relação a isso? Para aqueles que têm
uma tendência de procurar e encontrar “inimigos do povo”, sem dúvida é o
que pareceria. Assim, é mais seguro participar e evitar suspeitas.
Participar quando você na verdade não aprova o gesto é, no fim das
contas, um comprometimento da integridade tão pequeno que quase não tem
importância. Mas a probidade raramente é perdida de uma vez, ela se
erode aos poucos.
E se você aplaudir, mas parar antes dos outros? A intensidade de sua
gratidão pelos profissionais de saúde será medida pela duração de seu
aplauso? E quanto ao volume do barulho que você faz? De modo sutil,
lembrei-me das cenas depois da morte de Kim Jong-il na Coreia do Norte,
quando era perigoso ser pego sem estar chorando histericamente.
Com algumas exceções, gestos públicos desse tipo logo deixam de ser
sinceros. E então existe o fato de que o heroísmo sendo aplaudido
enquanto é desempenhado logo deixa de ser heroísmo e se torna outra
coisa. Você pode aplaudir o heroísmo em retrospecto, mas, se aplaudir um
herói por seu heroísmo enquanto ele está sendo heroico, você sutilmente
o coloca na direção do exibicionismo. Ele deixa de fazer o que faz com
naturalidade, só porque é seu dever fazê-lo, mas porque sabe que será
aplaudido e fica em busca do aplauso. O heroísmo é como a
excentricidade. Ao se tornar consciente de si mesmo, sua natureza muda e
se torna outra coisa. Por exemplo, o verdadeiro excêntrico se comporta
de maneira excêntrica porque não lhe ocorre ser diferente. Ele não está
deliberadamente tentando se destacar dos demais. A partir do momento em
que busca a reputação da excentricidade, ele deixa de ser excêntrico e
se torna um personagem — em geral, um personagem ruim.
Além disso, os funcionários dos hospitais estão longe de ser os
únicos a demonstrar devoção por seu dever em tempos difíceis. O homem
que entrega a correspondência e a mulher no caixa do supermercado são
heroicos à sua pequena maneira. Ninguém sai para a sacada nem aparece na
janela para aplaudir essas pessoas, mas, na verdade, elas são tão
essenciais, talvez mais essenciais, para a continuidade dos vestígios de
normalidade quanto os funcionários dos hospitais.
Desconfio fortemente que, embaixo da superfície, o aplauso das
pessoas na janela e na sacada é, na verdade, para si mesmas. “Veja como
sou generoso.” “Veja como me comporto bem apesar de meu longo
confinamento dentro de casa!” “Algum dia já houve tamanha indulgência em
condições difíceis quanto a minha, já houve tanto altruísmo, tanta
generosidade?” “Acho que mereço um aplauso. Aliás, todos nós merecemos
um aplauso.”
Nesta epidemia, fui um dos sortudos. Já trabalho em casa, então o
confinamento é apenas uma alteração relativamente pequena em meu estilo
de vida. Estou escrevendo um livro — na verdade, dois — e, de certa
forma, o confinamento é uma ajuda para mim, porque há pouca coisa parar
tirar a atenção deles. Mas nem todo mundo, longe disso, está nessa
situação — ou, pelo menos, espero que não. Se todos em casa estiverem
escrevendo dois livros, que esperança posso ter de que algum dos meus vá
vender? Um aumento no número de recém-nascidos é esperado para depois
do confinamento — bem como, talvez, no número de assassinatos domésticos
—, e é possível que haja um aumento similar no número de livros
escritos, se não publicados.
Sinto leve vergonha diante das pessoas que vêm fazer entregas à minha
porta. Seu trabalho não é muito bem remunerado, e me fazem sentir como
um paxá. Em geral, elas vêm de manhã, antes que eu tenha saído da cama.
Outro dia, por exemplo, o carteiro chegou com um pacote grande para mim
que continha as memórias de Madame Lafarge, a suposta envenenadora do
marido em meados do século 19 — o caso é infinitamente fascinante, e
ainda existem defensores de sua culpa e de sua inocência. Eram cerca de
11 da manhã e eu estava de pijama. Como o carteiro deve ter me achado um
moleque mimado e preguiçoso! Não tive a chance de explicar para ele
que, na verdade, eu estava trabalhando na cama fazia três horas. Mas
longe de ser rabugento ou desagradável, como seria de esperar caso
achasse que estava lidando com um explorador das massas, ele foi
extremamente educado e empolgado, e pareceu feliz em fazer seu trabalho.
Tem se falado muito na França, e sem dúvida em toda parte, sobre a
divisão da sociedade entre aqueles que têm a possibilidade de ficar em
casa durante a epidemia e aqueles que não têm; o primeiro grupo sendo
dos privilegiados e afortunados, e o segundo, dos miseráveis e
explorados. Se for esse o caso, o segundo grupo, considerando os que
encontro, está fazendo um bom trabalho em disfarçar seus sentimentos.
Acho que o que de fato importa é como alguém se comporta com as pessoas.
Theodore Dalrymple é o pseudônimo
do psiquiatra britânico Anthony Daniels. Daniels é autor de mais de
trinta livros sobre os mais diversos temas. Entre seus clássicos
(publicados no Brasil pela editora É Realizações), estão A Vida na
Sarjeta, Nossa Cultura, ou O Que Restou Dela e A Faca Entrou. É um nome
de destaque global do pensamento conservador contemporâneo. Colabora com
frequência para reconhecidos veículos de imprensa, como The New
Criterion, The Spectator e City Journal.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário