Nem tinha prestado atenção ao manifesto do "movimento", que reúne os
esquerdistas de sempre, náufragos do lulopetismo, mas Paulo Polzonoff
Jr., via Gazeta, alertou para a eterna cantilena desses artistas, intelectuais, celebridades et caterva:
Em mais uma tentativa desesperada e anacrônica de fazer prevalecer a
visão de mundo derrotada nas urnas nas eleições de 2018, a esquerda
brasileira acaba de lançar o movimento “Estamos Juntos”. Pelo texto do
manifesto, o leitor pode ter a impressão de que se trata de um esforço
conjunto para “fazer um Brasil que nos traga de volta a alegria e o
orgulho de ser brasileiro”. Mas é só uma iniciativa que pretende dar uma
rasteira na democracia, essa incompreendida.
Vale a pena analisar o texto do manifesto em que se baseia o
movimento. Afinal, as palavras, todas elas milimetricamente medidas para
passar a impressão de que se trata de um grupo que está acima das
pretensões político-partidárias, revelam muito da forma como pensa a
esquerda esclarecida e iluminada, a mesma que acha que o povo não soube
votar.
O manifesto “Estamos juntos” começa apresentando os signatários e
suas intenções. “Somos cidadãs, cidadãos, empresas, organizações e
instituições brasileiras e fazemos parte da maioria que defende a vida, a
liberdade e a democracia”, diz o texto. E aqui o leitor já deve ter
percebido que a ordem das palavras importa, por isso “cidadãs” vem antes
de “cidadãos”. A segunda oração da frase é de uma obviedade quase
infantil em sua intenção de seduzir e de criar identificação com quem
lê. Afinal, quem seria louco de se dizer contra a vida, a liberdade e a
democracia, não é mesmo?
Aliás, ser “a favor da vida” é um termo que a esquerda ainda não
conseguiu assimilar direito. Porque somente um desconhecimento crônico é
capaz de explicar como pessoas possam se dizer a favor da vida quando
lhes convém para, logo em seguida, defender uma causa muito cara a essa
esquerda dita esclarecida e iluminada, o aborto.
O segundo parágrafo do manifesto começa com uma distorção da
realidade que é sintomática de uma esquerda incapaz de sair da sua
bolha. “Somos a maioria”, diz o texto que, logo em seguida, não resiste
ao discurso autoritário ao exigir que “nossos representantes e
lideranças políticas exerçam com afinco e dignidade seu papel diante da
devastadora crise sanitária, política e econômica que atravessa o país”.
Este parágrafo (e o texto todo é escrito naquele estilo telegráfico
que esconde a ojeriza pelas conjunções e, consequentemente, pelo
encadeamento de ideias) merece uma análise mais detida. Ao se dizer
maioria, por exemplo, é como se o grupo se dissesse portador do poder de
tomada de decisões – o que vai contra a realidade manifestada nas
eleições de 2018. Nada menos democrático do que essa contestação míope
da realidade.
É, portanto, na condição de uma maioria que só existe na fantasia
deles que os signatários exigem algo dos nossos representantes e
lideranças políticas. O quê?! Que eles “exerçam com afinco e dignidade
seu papel”. Aqui novamente as palavras traem quem quer que tenha
redigido o texto, porque “afinco” pressupõe uma conduta firme. Quanto à
ideia de dignidade, o termo é subjetivo demais e só faz sentido para
aqueles que acham que o papel atual das lideranças políticas não está
sendo exercido com a tal dignidade. Ou decoro – palavra que está sempre
na boca de quem se escandaliza com o atual ocupante do Palácio do
Planalto.
No parágrafo seguinte, o texto prossegue com “somos a maioria de
brasileiras e brasileiros”. Sim, de novo a ideia de se tratar de uma
ideologia majoritária. Maioria segundo quem? Ou será que o grupo baseia
essa informação na ideia de que, levando em consideração as abstenções,
os idosos e os menores de 16 anos, o presidente Jair Bolsonaro foi
eleito por uma minoria?
O mesmo parágrafo termina com um trecho irônico, em que a esquerda
esclarecida e iluminada usa uma linguagem que a aproxima da direita
nacionalista, aquela mesmo que há não muito tempo dizia defender uma
“arte heroica”, ao “clamar” para que políticos unam a Pátria (eles
escrevem com letra minúscula) e resgatem “nossa identidade como nação”.
Mais um parágrafo e o texto volta a insistir na... fake news de que a
vontade da esquerda esclarecida e iluminada é a vontade da maioria da
população. “Somos mais de dois terços da população do Brasil”, diz o
manifesto, para pedir que partidos, líderes e candidatos “deixem de lado
projetos individuais de poder em favor de um projeto comum de país”.
Aí começa a parte mais cínica do texto: “Somos muitos, estamos
juntos, e formamos uma frente ampla e diversa, suprapartidária”.
Qualquer pessoa com um mínimo de experiência em política atenta para
lugares-comuns como “frente ampla e diversa” e, principalmente
“suprapartidária” – termo que, em geral, expressa exatamente o contrário
do que diz sua definição dicionarizada.
E, aqui, novamente a esquerda esclarecida e iluminada se revela por
completo ao dizer que “valoriza a política e trabalha para que a
sociedade responda de maneira mais madura, consciente e eficaz aos
crimes e desmandos de qualquer governo”. Ou seja, a sociedade atual não é
“madura e consciente” o bastante – o que é uma opinião até aceitável,
mas que demonstra que os signatários olham para a sociedade sempre de um
ponto moralmente privilegiado. Sempre do alto de sua torre de marfim.
“Como aconteceu no movimento Diretas Já”, continua o texto, “é hora
de deixar de lado velhas disputas em busca do bem comum”. A referência
ao movimento Diretas Já não faz nenhum sentido. A não ser que – eureca! –
os signatários pressuponham que estamos vivendo uma ditadura. E qual
seria esse bem comum que deveríamos buscar?
Até aqui, repare, o manifesto se atém à tentativa de se definir como
“maioria”, o que lhe conferiria legitimidade para interferir nas tomadas
de decisões da “minoria” – ainda que essa “minoria” tenha sido eleita
pela maioria dos votos em eleições democráticas.
O parágrafo continua. “Esquerda, centro e direita unidos para
defender a lei, a ordem, a política, a ética, as famílias, o voto, a
ciência, a verdade, o respeito e a valorização da diversidade, a
liberdade de imprensa, a importância da arte, a preservação do meio
ambiente e a responsabilidade na economia”.
Esse trecho é uma mixórdia de valores e, sinceramente, uma mentira em
vários níveis. A esquerda de Guilherme Boulos, um dos signatários
(claro!) do manifesto, defende a lei e a ordem? A esquerda do Mensalão e
Petrolão defende a ética? E a que verdade estamos fazendo referência
aqui? À verdade de que o impeachment de Dilma Rousseff não foi golpe ou à
verdade de Petra Costa (outra signatária do documento) de que o
impeachment foi gópi?
“Defendemos um país mais desenvolvido, mais feliz e mais justo”, diz o
texto logo adiante, caindo novamente em contradição. Porque a disputa
política sadia é justamente a disputa pelo melhor caminho a fim de se
alcançar o desenvolvimento e a felicidade. E há caminhos que são
simplesmente antagônicos, como o capitalismo e o socialismo. Como,
então, esse manifesto poderia reunir pessoas que buscam um bem comum se o
bem que eles buscam é necessariamente diferente?
Uma tentativa de explicar isso talvez esteja no parágrafo seguinte.
“Temos ideias e opiniões diferentes, mas comungamos dos mesmos
princípios éticos e democráticos”, diz o texto. As palavras assim todas
juntas parecem querer dizer algo lindo e elevado, quando na verdade
formam um discurso vazio, que ignora o profundo abismo ético e
democrático entre capitalistas e socialistas que agora se dizem
“unidos”. Como fica, por exemplo, o princípio ético da propriedade
privada? Sem falar no princípio democrático do respeito aos vencedores
das eleições que o próprio movimento, ao se dizer maioria, tenta
subverter.
O texto termina com um fim apoteótico e simbólico do sentimentalismo
vazio que norteia a esquerda esclarecida e iluminada. “Queremos combater
o ódio e a apatia com afeto, informação, união e esperança. Vamos
juntos sonhar e fazer um Brasil que nos traga de volta a alegria e o
orgulho de ser brasileiro”, lê-se. Aqui o manifesto parece transbordar
de virtude politicamente correta, quando, na verdade, se aproxima do
discurso de certo presidente norte-americano que prega que os Estados
Unidos se tornem grandes novamente.
Por fim, e apesar de se dizer um movimento de união da “maioria” de
esquerda, centro e direita, entre os signatários estão apenas pessoas
identificadas com a esquerda ou centro-esquerda. São artistas,
acadêmicos, políticos e gente ligada aos movimentos sociais, que tentam
seduzir o público com palavras vazias e sentimentalismo em torno de uma
causa que nada tem de democrática: derrubar o governo eleito e fazer
prevalecer os valores dessa eterna minoria esclarecida e iluminada.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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