Em entrevista à Veja
que estará nas bancas a partir de amanhã, o escritor peruano Mário
Vargas Llosa diz que governos autoritários usam o liberalismo como
demagogia e que o conceito é inseparável da liberdade, que vai além do
campo da economia:
É preciso dispor de certa dose de ousadia para, em uma mesma vida,
transitar entre os papéis de jornalista, romancista laureado com um
Nobel de Literatura, candidato a presidente de um país e, aos 82 anos,
transformar a autobiografia em um minucioso trabalho de filosofia
política. Essas são apenas algumas curvas da vida do peruano Mario
Vargas Llosa, que em seu último livro, La Llamada de la Tribu, a ser
lançado no Brasil em 2019 pela Objetiva, funde sua história intelectual
com um inventário do liberalismo sob a ótica de sete pensadores, entre
eles Adam Smith e Karl Popper. A VEJA, o autor descreve como se deu sua
adesão às ideias liberais, fala dos riscos do populismo no mundo,
critica a intolerância na literatura e comenta as eleições presidenciais
no Brasil, que tem acompanhado de perto. Para ele, escolher entre o PT e
Jair Bolsonaro será como escolher “entre a aids e o câncer terminal”.
Por que o senhor decidiu escrever sobre a doutrina liberal? A
ideia surgiu quando li o ensaio Rumo à Estação Finlândia, de Edmund
Wilson, que descreve o ideário socialista e sua evolução até a chegada
de Lenin à Rússia para comandar a revolução. Senti vontade de fazer algo
parecido, mas sobre o liberalismo. Queria mostrar como essa filosofia
influenciou as sociedades ocidentais, aperfeiçoou as democracias e abriu
caminhos não só para o liberalismo econômico, mas também para as
liberdades individuais, como a de gênero, a de credo e a sexual. No fim,
trata-se da minha própria história e minha evolução, que vai desde uma
juventude marcada pelo marxismo e pelo socialismo até a maturidade, em
defesa da democracia e do liberalismo. E creio que esse também tenha
sido o caminho percorrido por muita gente na América Latina.
O marxismo e o keynesianismo sofreram deformações quando passaram da teoria à prática. O mesmo aconteceu com o liberalismo?
Houve dois movimentos que deturparam o conceito liberal: um à esquerda e
o outro à direita. Ele foi usado de forma muito arbitrária por partidos
reacionários e conservadores, e também por aqueles que patrocinaram
ditadores, como foi o caso do Somoza, na Nicarágua, que se dizia um
liberal. Ocorre que há uma grande diferença entre um governo liberal e
um governo que empreende algumas medidas de abertura econômica. A
liberdade é inseparável do liberalismo. E a liberdade não pode ser só
liberdade econômica: deve avançar ao mesmo tempo nos campos econômico,
político, social e cultural. Por mais que um regime autoritário
empreenda certas políticas de mercado, não pode ser chamado de liberal.
Nem Pinochet, nem os militares argentinos, tampouco os generais
desenvolvimentistas brasileiros foram liberais.
E como a esquerda deturpou o conceito? Uma extrema esquerda
sectária e dogmática sempre apresentou o liberalismo como uma doutrina
fundamentalmente conservadora caracterizada por governos de ditadores. A
esquerda sempre tachou o liberalismo de inimigo. Chama-o de
“neoliberalismo”, que eu ainda não descobri o que vem a ser. Esse
preconceito resultou num atraso econômico só revisto mais recentemente.
Na América Latina, onde essa aversão sempre foi forte, os governos
atuais já são orientados em outra direção. O Uruguai tem um governo de
esquerda com uma política essencialmente liberal. Há economia de
mercado, o setor privado é respeitado e existe liberdade política e de
imprensa. Até poucas décadas atrás, era um país de extrema esquerda. O
Chile pós-Pinochet também tem uma democracia em que se sucederam
governos de direita e esquerda, mas todos mantiveram a liberdade
econômica, política e de imprensa. O Peru e a Colômbia caminham nessa
direção e progridem.
Por que o populismo surge em economias liberais? Creio que uma
das principais causas seja o nacionalismo, que considero uma peste que
deu origem a terrores da humanidade, como o nazismo, o fascismo e o
comunismo. O nacionalismo parte do princípio de que os seres humanos se
sentem mais cômodos quando estão rodeados daqueles que têm os mesmos
costumes, as mesmas crenças e as mesmas tradições. O fato de ter orgulho
de suas raízes pode se manifestar como patriotismo, o que é positivo.
Mas vira nacionalismo quando passamos a ter medo do mundo ao redor e a
achar que nossa tradição é melhor que a do outro. Aí o sentimento
rapidamente se degenera, porque pode se manifestar em forma de
violência. O populista autoritário se alimenta desse sentimento. É o seu
principal combustível. O caso da Espanha, por exemplo, é dramático.
Depois de uma transição pacífica pós-Franco, os flancos de nacionalismo
cresceram e são hoje seu maior problema. A União Europeia, o maior
projeto de internacionalismo de que se tem notícia, vem sendo duramente
golpeada por populistas. Na América Latina, passamos desde nossa
independência até hoje comprando armas e nos matando por razões
nacionalistas, e fracassando como sociedades incapazes de progredir.
O senhor enxerga, no Brasil, o risco do ressurgimento do nacionalismo e do populismo?
O futuro do Brasil provoca muita incerteza. O país passa por um
processo brutal de regeneração institucional, com a Lava-Jato prendendo
poderosos e uma classe média farta de corrupção. Essa regeneração pode
reverberar em toda a América Latina, o que é positivo. O fato de Lula
ter sido condenado também envia mensagens importantes aos políticos. É
difícil acreditar que alguém capaz de manter as coisas nessa curva
ascendente não consiga se eleger presidente! O Brasil tem uma ampla
margem de eleitores sensatos e aptos a escolher um candidato moderado
que encarne essa missão, mas os dois líderes nas pesquisas parecem ser
justamente o oposto disso. Esse senhor Bolsonaro parece tão perigoso
quanto o PT ou Lula. Escolher entre ambos é, numa alusão grosseira, ter
de escolher entre a aids e o câncer terminal. É preciso que os
brasileiros acordem para votar em um centro democrático e progressista,
que reconcilie a população e consiga pôr em prática um governo liberal.
Estar diante desse prognóstico de extremos, de populismo, é uma
insensatez, um retrocesso.
Bolsonaro arregimentou um economista liberal, Paulo Guedes, para
ser seu ministro da Fazenda, caso ganhe. O liberalismo pode florescer
num governo populista? De forma alguma. Um bom economista liberal
que esteja a serviço de um governo autoritário ou autocrata, como se
apresenta um hipotético governo Bolsonaro, é a mais pura negação do
liberalismo. Não há exemplos na história em que essa junção tenha dado
certo ou resultado em uma economia liberal de fato. Não creio que o
Brasil será a exceção. De tudo o que li sobre Bolsonaro, me parece claro
que não compartilha de ideias democráticas, muito menos liberais, além
de ter vocação e temperamento claramente autoritários. Elegê-lo seria
uma pena para o Brasil, assim como eleger o candidato do PT.
A tributação de grandes fortunas é um dos remédios propostos por
economistas para reduzir a desigualdade. Liberais torcem o nariz para a
ideia. O que o senhor pensa sobre isso? Penso que há diferentes
caminhos econômicos para chegar a um mesmo fim. Mas a ideia de que temos
de castigar os ricos porque são ricos me parece um disparate. Que
castiguem os inúteis que não produzem nada, e não quem cria emprego e
oportunidade. É preciso que haja menos demagogia: as fortunas que criam
progresso têm de ser justamente cultivadas, e não reprimidas.
O senhor já disse que o feminismo era inimigo da literatura. As
políticas identitárias podem servir como entrave à criação literária? Quando
disse isso, um fenômeno perigoso acontecia na Europa, e ainda persiste.
Feministas absolutamente radicais atacavam obras de prestígio alegando
que seus autores seriam machistas. Os ataques eram direcionados a
Vladimir Nabokov, autor de Lolita, que era um livro perverso na visão de
algumas feministas. Tudo isso me pareceu inconcebível, já que Lolita é
um dos grandes romances do século XX. Que o personagem tenha
características negativas, bom, há muitos na literatura. Em Dostoiévski,
Balzac, se tirarmos os negativos sobra pouca coisa. Sou contra esse
tipo de efeito de uma política identitária porque significa censura,
significa uma deformação fanática do senso de justiça. Concordo com a
luta contra a desigualdade da qual é vítima a mulher. Mas há setores do
feminismo que são absolutamente fanáticos e é preciso combatê-los. Não
se pode substituir uma intolerância por outra.
A intolerância é o maior inimigo da literatura hoje? Ela
atrapalha quando impede que a literatura seja um espelho fiel da
sociedade. Mas há um problema um pouco mais complexo: antes de nos
debruçarmos sobre os temas, é preciso garantir que haja bons leitores e
bons livros. E, sob essa ótica, há um inimigo pior que a intolerância,
que é a frivolidade, a literatura “espetáculo”, sobre a qual escrevi no
livro A Civilização do Espetáculo. Há uma banalização cultural que
prejudica o papel da cultura como fonte de atitudes críticas. Se a
literatura e a cultura em geral passam a ser vistas somente como
entretenimento, há um empobrecimento grande do espírito crítico do
cidadão. Cultura não é entretenimento. É fonte de formação de alicerces
democráticos. Uma sociedade que consome literatura está muito mais
protegida contra a demagogia, mentiras e pós-verdades de nossa época.
O Nobel de Literatura não foi concedido neste ano em decorrência
de um escândalo de assédio envolvendo o marido de uma das integrantes da
Academia Sueca. Houve exagero? Não sei dizer. Sei que é muito
desconcertante descobrir que a Academia patrocinou um homem denunciado
por tantas mulheres. Como a Justiça parece funcionar por lá, culpados
deverão ser punidos. Mas creio que é um assunto já superado.
Dar o Nobel de Literatura a Bob Dylan foi uma forma de premiar o espetáculo? Creio
que sim. Hoje o que se busca são personagens populares. Foi um equívoco
monumental, a meu ver. Bob Dylan é um músico muito relevante, mas me
parece um disparate dar um prêmio de literatura a ele. Afinal, não são
os “personagens espetáculo” cujas obras literárias prevalecem, e sim os
grandes escritores — e é isso que o Nobel deveria premiar. Lamento que
Philip Roth, um dos grandes de nosso tempo, tenha morrido sem ser
reconhecido como tal pelo Nobel. Mas tenho a impressão de que sua obra é
maior que qualquer prêmio, pois reflete muito nosso tempo, no melhor e
no pior.
Publicado em VEJA de 3 de outubro de 2018, edição nº 2602
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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