MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

domingo, 5 de março de 2023

Você foi enganado: Trump e Bolsonaro não são conservadores.

 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

Os dois ex-presidentes são caracterizados pela imoderação, imprudência e irresponsabilidade. Bruno Garschagen para a revista Crusoé:


A participação dos ex-presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro no CPAC (Conferência de Ação Política Conservadora, na sigla em inglês) no início de março contribuiu para ratificar um grande equívoco: a de que ambos seriam conservadores. Ledo engano. Os dois representam outro tipo de ideia.

Para começar, é preciso enfatizar que cada país tem a sua própria tradição política conservadora. Por essa razão, não é possível considerar o conservadorismo como sendo uma mesma coisa em todos os países ocidentais. É um fenômeno distinto, portanto, do que com o que acontece com o liberalismo clássico e com o socialismo marxista, os quais têm uma identidade global. Cada conservadorismo está necessariamente vinculado à história, às tradições, à cultura social e política de cada nação. Sem esses fundamentos que vinculam a posição política conservadora ao país de origem, não há conservadorismo.

Apesar da exigência desse vínculo local que singulariza cada tradição conservadora, há fundamentos comuns e essenciais que vinculam os vários conservadorismos no Ocidente. São elementos que atribuem natureza, forma e conteúdo ao conservadorismo e servem de parâmetro para definir se um movimento, partido ou indivíduo é ou não é conservador.

Alguns dos principais fundamentos do conservadorismo são o tradicionalismo, organicismo, ceticismo, prudência. Em resumo bem resumido:

1) o tradicionalismo é o respeito que o conservador tem pelo passado, entendido como um sábio conselheiro, e pelas tradições virtuosas que nos foram legadas, e não toda e qualquer tradição, o que faz com que o conservador seja contrário à revolução, no sentido moderno do termo;

2) o organicismo é a visão conservadora do indivíduo não como um ser individualista e atomizado, mas como ser humano social que vive, identifica-se e relaciona-se socialmente com as outras pessoas tendo como vínculo comum a história, tradições, cultura, idioma, costumes, hábitos, normas, instituições;

3) o ceticismo conservador é baseado na ideia de que o conhecimento político que se pode adquirir é limitado, que esse conhecimento também deve ser prático e não exclusivamente teórico, e que está fundamentalmente vinculado à vida concreta em sociedade. Não pode o conservador, portanto, formular e tentar implantar teses políticas idealizadas, abstratas e desvinculadas da experiência real da comunidade da qual faz parte;

4) a prudência, no conservadorismo, é uma combinação da concepção de Aristóteles sobre a virtude intelectual e virtude moral, ou seja, a prudência entendida como a virtude da boa deliberação e da escolha dos instrumentos adequados para garantir a retidão dos meios e dos fins pretendidos.

Feita essa explicação e cotejando os elementos fundamentais e comuns dos conservadorismos com o histórico político de Trump e Bolsonaro, é possível perceber por que eles não podem ser considerados conservadores. A dissociação torna-se ainda mais profunda quando analisamos postura, linguagem, retórica e atos políticos de ambos usando como parâmetro as tradições conservadoras americana e brasileira.

Tomando como base dois livros importantes para a compreensão do conservadorismo americano, nem com muito boa vontade é lícito qualificar Trump como conservador, seja a partir dos dez princípios conservadores explicados por Russel Kirk em A Política da Prudência (É Realizações, 2013) seja pela impossibilidade de localizá-lo dentro da história do conservadorismo americano descrita por George H. Nash em O Movimento Intelectual Conservador na América – Desde 1945 (LvM/Clube Ludovico, 2023).

Ideologicamente, nem sei se é possível qualificar Trump. Com uma atribulada trajetória empresarial, o americano sempre foi um hábil e agressivo negociador, e assim se comportou como presidente. Ao perceber que havia uma lacuna política no Partido Republicano e no seio de seu eleitorado mais pobre, Trump construiu uma agenda política baseada no “Make America Great Again”, slogan que foi copiado dos conservadores ingleses, o “Make Britain Great Again”, usado na eleição de 1950.

O interesse de Trump, no entanto, parece ser sobretudo em ter e exercer o poder político. Talvez quem melhor o tenha definido foi o conservador William F. Buckley Jr., que, num artigo publicado no ano 2000 pela revista Cigar Aficionado, descreveu Trump como demagogo e narcisista. E, na histórica edição em 2016, a revista National Review posicionou-se contra a eleição de Trump e o descreveu como um oportunista que destruiria, com seu populismo, “o amplo consenso ideológico conservador dentro do Partido Republicano”. A revista estava certa.

No caso de Bolsonaro, a mentira do político “conservador” começou a ser disseminada publicamente com maior visibilidade na campanha eleitoral de 2018. O próprio Bolsonaro citou poucas vezes a palavra conservador e não lembro se alguma vez ele tenha se definido como tal, mas o crescimento avassalador do número de apoiadores fez com que o termo ganhasse amplitude para qualificar a ele e quem o apoiasse, mesmo que ignorassem o que é ser conservador.

Bolsonaro não é conservador não apenas porque seus posicionamentos e atuação política não se enquadram nos fundamentos do conservadorismo, nem na tradição do conservadorismo brasileiro que existiu no século 19. Bolsonaro e seus apoiadores não guardam qualquer identificação com as bases e ideias dos conservadores brasileiros da nossa tradição apresentadas no livro Os Construtores do Império, de João Camilo de Oliveira Torres, e no ensaio Evolução Histórica do Conservadorismo no Brasil, de autoria de Alex Catharino e publicado como posfácio à edição brasileira do livro A Mentalidade Conservadora: de Edmund Burke a T. S. Eliot, de Russell Kirk (É Realizações, 2020).

Bolsonaro também não é conservador porque representa uma mescla de positivismo militar do início do século 20, do jacobinismo florianista daquele mesmo período e do tipo de populismo criado por Steve Bannon. Sendo uma combinação dessa curiosa mistura ideológica, Bolsonaro jamais poderia ser conservador.

Portanto, a cosmovisão política radical de Trump e Bolsonaro, como uma resposta às ideologias revolucionárias e grupos radicais contra os quais eles se insurgem, não tem qualquer resquício de conservadorismo, pelo contrário. A imoderação, imprudência e irresponsabilidade de ambos na vida política são o contrário do que é ser conservador e agir politicamente de forma conservadora. No fundo, ambos pensam e comportam-se politicamente como o produto reverso dos seus inimigos revolucionários e não segundo uma disposição e perspectivas conservadoras.

De fato, Trump e Bolsonaro têm suas semelhanças e foram elas que os aproximaram. Mas, repito, nada disso tem a ver com conservadorismo. Que eles, fora do poder, se encontrem no CPAC é explicável: o evento, que já foi conservador, converteu-se num satélite do trumpismo e, por essa razão, permitiu que sua edição brasileira fosse concebida e realizada para ser bolsonarista. Não vejo problema nisso, desde que o CPAC e os apoiadores de Trump e Bolsonaro não enganem a audiência ao usar o termo conservador para descrever o evento e aquilo que defendem.

Bruno Garschagen é cientista político, professor, autor dos best-sellers Pare de Acreditar no Governo e Direitos Máximos, Deveres Mínimos, e especialista em pensamento conservador
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