MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

segunda-feira, 27 de março de 2023

Os intelectuais do Itamaraty e o caso único de José Guilherme Merquior.

 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

Teria Merquior sido um grande chanceler para o Brasil? Provavelmente sim, mas creio que o Itamaraty seria muito pequeno e burocrático para ele. Artigo do diplomata Paulo Roberto de Almeida para a Crusoé:


Entre o final do século 20 e o início do nosso, o embaixador Alberto da Costa e Silva coordenou uma obra encomendada pelo então chanceler de Fernando Henrique Cardoso, Luiz Felipe Lampreia, sobre os intelectuais mais distinguidos do serviço exterior do Brasil. A obra, terminada já na gestão do chanceler Celso Lafer, em 2001, e prefaciada por ele, foi publicada numa edição ricamente ilustrada por abundante iconografia, tendo recebido um título honroso: O Itamaraty na Cultura Brasileira (Brasília: Instituto Rio Branco, 2001; 2ª edição pela Editora Francisco Alves em 2002, mas em edição popular, sem ilustrações).

A primeira edição desse livro magnífico, também contando com edições em espanhol e inglês, sintetizou a vida, a carreira diplomática e a produção cultural de grandes intelectuais brasileiros entre meados do século 19 e a última década do século 20, pois que finalizado pela trajetória excepcional de José Guilherme Merquior, falecido precocemente em 1991, depois de ter escrito importantes obras de filosofia, de crítica literária e de sociologia, diretamente em francês e em inglês, ademais de polemizar com intelectuais do Brasil e do mundo.

Itamaraty é uma designação que cabe bem no século 20, mas o fato é que a obra cobria também intelectuais do Segundo Império, quando o então Ministério dos Negócios Estrangeiros abrigava mais filhos das elites latifundiárias do que propriamente intelectuais de reputação estabelecida. Mas, com exceção de Varnhagen, o patrono da historiografia brasileira e cuja biografia pelo historiador Arno Wehlig abriu essa obra portentosa, e do músico Brazílio Itiberê da Cunha, cuja dupla carreira foi cuidadosamente retraçada pelo diplomata Celso Tarso Pereira, vários dos nascidos sob o regime monárquico só se tornaram diplomatas já na República, a exemplo de Joaquim Nabuco (antes simples adido de favor em Londres), do próprio Paranhos Jr., o barão do Rio Branco — que tinha começado como cônsul do Império, uma carreira que era separada da diplomática até os anos 1930 — e do historiador Manoel de Oliveira Lima, estudado pelo também historiador Carlos Guilherme Mota.

Em sua introdução, Diplomacia e Cultura, o organizador Alberto da Costa e Silva discorre sobre os que, sendo diplomatas ou na função se desempenhando ocasionalmente, se exerceram também nas letras e nas artes: “Em alguns, o viver no estrangeiro favoreceu a criatividade. Noutros dispersou-a… Houve os que viveram o dia a dia da saudade. E os que da terra natal emotivamente se apartaram. Os que não sabiam sonhar senão com o Brasil. E os que só conseguiam compor versos em francês.” A abertura, pelo então chanceler Celso Lafer, enalteceu o sentido da obra, ao reunir “ensaios sobre algumas das mais expressivas e representativas figuras da cultura brasileira nos últimos dois séculos“. O que os uniu, no livro, foi justamente o fato de terem pertencido, em épocas diversas, ao Itamaraty. Como Celso Lafer justamente ressaltou:

“Poucas instituições públicas — e não penso apenas no Brasil — podem orgulhar-se de reunir nomes do quilate de Joaquim Nabuco, Oliveira Lima, João Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto e José Guilherme Merquior, para ficarmos apenas em alguns dos muitos diplomatas que engrandecem a Casa de Rio Branco e que são aqui homenageados.”

Entre os muitos autores apresentados no livro figuram poetas como Ribeiro Couto, Raul Bopp, João Cabral de Melo Neto e Vinicius de Moraes, literatos como Aluísio Azevedo e Guimarães Rosa e juristas como Gilberto Amado. A obra se encerra, como já mencionado, pela figura excepcional de José Guilherme Merquior, falecido precocemente dez anos antes, provavelmente apenas no início de uma brilhante trajetória de ensaísta e de filósofo político que o teria levado à culminância de uma obra intelectual verdadeiramente internacional, capaz de elevar o nome do Brasil a uma projeção inédita nessas áreas, a que nunca chegou o país pela pluma dos seus outros trabalhadores do espírito. No conjunto, essa obra sobre os “embaixadores da cultura brasileira” oferece um rico panorama da produção intelectual e artística de grandes nomes da cultura nacional, que o teriam sido independentemente de pertencerem ou não aos quadros da carreira diplomática, mas que a ela trouxeram o brilho de seus escritos e ações práticas que justificam plenamente sua inscrição em qualquer “livro de ouro” da inteligência brasileira.

Todos eles não se contentaram com o expediente sempre burocrático da Chancelaria ou de uma representação no exterior, ao terem de redigir aborrecidos ofícios de função e enfadonhos telegramas de instruções ou relatando reuniões ocorridas, conferências nem sempre exitosas, negociações complicadas: vários aproveitavam as lacunas do trabalho oficial para rabiscar cadernos de notas, registrar lampejos de criatividade, ensaios acadêmicos ou digressões literárias. Para muitos, se tratava de um divertissement, para outros era uma aventura do espírito, uma memória de viagem, uma introspecção filosófica, um mergulho em arquivos estrangeiros ou simples poemas singelos, invariavelmente com saudades da pátria. Escrever, para diplomatas, sempre foi algo tão normal quanto bebericar sucos e destilados nas muitas recepções oficiais a que são obrigados a comparecer, tanto por dever de ofício como pela absoluta necessidade de bem representar o país no exterior e no próprio Brasil.

Mas, reconhecidamente, o diplomata brasileiro deste início de século 21 ostenta pouca semelhança com seu homólogo supostamente em “punhos de renda” do começo do século 20. A chamada “diplomacia ornamental e aristocrática” há muito tempo ficou para trás, soterrada pela mesma tendência à burocratização e à tecnocracia que caracterizam quase todos os serviços do Estado nas democracias modernas. Os diplomatas, a bem da verdade, formam a primeira categoria do funcionalismo público a se submeter a regras de recrutamento profissionalizado — desde 1939 pelo Dasp e a partir de 1945 pelo Instituto Rio Branco —, superando a seleção algo arbitrária de outros estratos funcionais ou a que vigorava entre os próprios diplomatas da época do barão do Rio Branco, no começo do século. Os exames são comprovadamente rigorosos, e o antigo viés elitista marcado pela exigência de um francês impecável foi eliminado há vários anos, substituído pela lingua franca da atualidade, o inglês.

Mas não se considere que os novos recrutados para a diplomacia tenham se equiparado à média do funcionalismo brasileiro, cujos padrões são altamente desiguais, dependendo da categoria. O diplomata brasileiro continua a ser, antes de mais nada, o mais “intelectualizado” representante da burocracia pública, uma espécie de “ilha de excelência” no mar nem sempre muito azul da competência estatal. Quatro exemplos de “intelligentsia” diplomática foram, quase contemporaneamente, grandes intelectuais de estatura internacional: o já mencionado crítico literário e polemista político José Guilherme Merquior, o cientista político José Osvaldo de Meira Penna, autor de vastíssima obra de cunho liberal, o economista Roberto de Oliveira Campos, profeta antes do tempo, e o mais recentemente falecido filósofo e ex-ministro da Cultura Sérgio Paulo Rouanet. A estes poderiam ser acrescentados, entre os vivos, o ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero, depois secretário-geral da Unctad em Genebra, uma espécie de George Kennan brasileiro, e o fecundo historiador Evaldo Cabral de Melo, especializado na história regional do Nordeste, desde o período seiscentista até o seu papel revolucionário na construção de um Brasil menos bragantino e menos centralizado, como evidenciado pelas revoltas de 1817, 1824 e 1848.

Atualmente, com a rapidez e a concisão dos telegramas eletrônicos — quando tudo se resume a um simples e-mail, ainda que cifrado —, já não se dispõe mais da liberdade literária dos longos ofícios que seguiam de navio ao seu destino final. Pode ser, nessas condições, que as veias poéticas de muitos chefes de posto já se tenham esgotado nas gerações mais recentes, embora alguns poetas pareçam resistir ao burocratês e ao diplomatês do linguajar dos tempos modernos. Mas o acesso ampliado à pletora de informações livremente disponíveis na internet, assim como aos livros digitais, potencializou enormemente a vocação escrevinhadora de muitos colegas, porque hoje é muito fácil juntar as suas mal traçadas linhas e publicar nas redes existentes; dessa forma, todo diplomata pode ser um self-made writer, e já são muitas as obras de diplomatas disponíveis em formato eletrônico, de editora ou de autor.

Um diplomata pode até não ter nenhum estilo, mas ele inevitavelmente sabe escrever muito bem, inclusive porque os exames de ingresso na carreira são anormalmente exigentes nessas coisas da escrita e da articulação do pensamento. Ao longo da carreira, ademais, eles são obrigados a provar sua competência funcional e intelectual, por meio de exames de capacitação — quando segundos secretários — e por meio de uma tese parcialmente acadêmica no caso do Curso de Altos Estudos, um requerimento indispensável para a promoção de um conselheiro, ou conselheira, a ministro(a) de segunda classe. As melhores teses do CAE são regularmente publicadas pela Fundação Alexandre de Gusmão e hoje compõem uma das mais ricas bibliografias brasileiras de estudos de relações internacionais, de política externa brasileira e de história diplomática, um acervo sem qualquer correspondência no domínio editorial, tanto universitário quanto comercial.

Como no caso dos finados intelectuais examinados naquela obra pioneira de 2001, os novos representantes da cultura do Itamaraty tangenciam uma pergunta que permanece sem resposta precisa na atualidade: quem, afinal, leva prestígio para quem? Foi o Itamaraty que propiciou o florescimento da inteligência, ao permitir a combinação dos afazeres burocráticos com um ambiente propício à escrita de qualidade, ou foram os talentos individuais de pessoas de letras e de pesquisa acadêmica, ocasionalmente da carreira, mas que trouxeram prestígio ao Itamaraty a despeito de terem produzido obras refinadas, embora devidas essencialmente ao seu labor solitário? Numa outra visão: esses intelectuais já o eram antes, e independentemente de terem ingressado na carreira, ou se tornaram intelectualizados graças ao contato original com grandes obras do pensamento e da pesquisa acadêmica — uma exigência dos exames de ingresso —, assim como com o ambiente de intensa produção cultural em diversas capitais do circuito diplomático ao longo da carreira?

Tomemos, justamente, o caso de José Guilherme Merquior (1941-1991). Ele foi, segundo Eduardo Portella, “a mais fascinante máquina de pensar do Brasil pós-modernista: irreverente, agudo, sábio”; também foi chamado, pelo seu apreço pela polêmica, geralmente em direção da esquerda acadêmica, de “esgrimista liberal”. Merquior já era brilhante bem antes de ingressar no Itamaraty, em plena era da Política Externa Independente. San Tiago Dantas, um dos promotores dessa diplomacia autônoma, na sucessão de Afonso Arinos de Mello Franco, foi o paraninfo na formatura de sua turma, em 1963, no mesmo ano em que ele publicava seu primeiro livro, de crítica literária. Os colegas mais velhos do Itamaraty, espantados com a erudição revelada em seu discurso de primeiro da turma, passaram a chamá-lo de “Tesouro da Juventude”, título de uma enciclopédia juvenil muito famosa naqueles anos. Sua produção literária e ensaística, em pouco mais de três décadas de ativismo intelectual, é propriamente espantosa, medida unicamente pelo que foi publicado em vida, uma série imensa de obras densas e abundantemente recheadas de notas remissivas e referências bibliográficas, às quais caberia agregar materiais inéditos e complementares que vêm sendo selecionados pela família e pelos novos editores, coletados em edições post-mortem.

Sua extraordinária e prolífica produção se divide, basicamente, de um lado, em obras de crítica literária, artística e estética e, de outro, em trabalhos de sociologia, de política e de cultura. Embora tenha sido na primeira categoria que ele se distinguiu precocemente — primeiro nas páginas dos suplementos literários dos periódicos do Rio de Janeiro desde o final dos anos 1950, depois em livros contendo os ensaios coletados —, a partir de meados da década seguinte, foi na segunda categoria que ele marcou definitivamente sua breve mais fecunda passagem pela paisagem política brasileira. Suas atividades especificamente diplomáticas — informar, negociar, representar — eram provavelmente exercidas em meio às suas leituras e na imbricação de seus afazeres mais acadêmicos do que burocráticos.

Merquior, provavelmente influenciado pelo mestre San Tiago Dantas, sempre teve obsessão pelo predomínio da razão, não apenas no trabalho puramente teórico de pesquisador acadêmico, mas igualmente no processo de definição e implementação de políticas públicas, sejam elas internas ou desenvolvidas no plano externo da nação. Daí o cuidadoso escrutínio que ele sempre exerceu em relação às ideias e argumentos proferidos e publicamente divulgados por colegas intelectuais, no importante trabalho de desvendar a trama das ideologias, de afastar o véu da falta de lógica, e mesmo de irracionalidade, contido nessas posturas e de aproximar assim, o mais possível, o discurso didático do ambiente real, no qual vivemos e exercemos direitos democráticos e desempenhamos obrigações sociais.

Em todos os postos nos quais serviu — Paris, Londres, Montevidéu, Paris novamente, já como embaixador do Brasil junto à Unesco —, Merquior foi um representante da cultura brasileira no exterior, um elo de ligação entre aderentes a ideologias opostas — marxistas e liberais, por exemplo — e também uma ponte entre intelectuais dos diferentes países pelos quais circulou, nos quais tinha livros publicados com grande impacto na chamada República das Letras (alguns foram escritos primeiro em inglês, depois traduzidos e publicados no Brasil; outros em francês, e há também textos em espanhol).

Há uma série de palestras feitas a convite de entidades locais e que condensam a mesma densidade da pesquisa e a alta qualidade argumentativa já presentes nas obras maiores. É o caso de conferências feitas, já como embaixador, no México ou na missão junto à Unesco, em Paris, seus dois últimos postos. Paradoxalmente, um dos seus trabalhos menos conhecidos, aparentemente nunca publicado em português, foi a palestra feita por ele nas derradeiras semanas de sua vida, no dia 17 de dezembro de 1990, no quadro das comemorações dos cem anos da República brasileira, no âmbito do Centre de Recherches sur le Brésil Colonial et Contemporain, da École des Hautes Études en Sciences Sociales. Embora representante diplomático do Brasil junto à Unesco, Merquior nunca se eximiu de expressar exatamente um retrato fiel do Brasil, como se pode constatar pela transcrição, livremente traduzida de algumas passagens de sua alocução feita em francês:

“Nós temos uma sociedade móvel. … entre os 50 brasileiros mais ricos, o primeiro herdeiro só aparecia em 47º lugar. Portanto, temos uma sociedade móvel, mas ao mesmo tempo essa sociedade móvel é muito desigual. Ela se caracteriza por taxas de desigualdades sociais, por distâncias socioeconômicas que são simplesmente espantosas e que sempre constituíram, por outro lado, o reverso da medalha brasileira, quando se procede a comparações internacionais. Portanto, ao final deste primeiro século republicano, nós conseguimos ainda assim nos tornar a primeira potência industrial do Sul (…), mas ao mesmo tempo apresentamos indicadores sociais medíocres. (…) Ao lado de tudo isso [impulso de desenvolvimento e crescimento perfeitamente inegável], nós vivemos realidades sociais deploráveis na maior parte dos casos, e nós continuamos a ter, neste momento, taxas de desigualdades insuportáveis para nossa consciência ética. (“Brésil: cent ans de bilan historique”, Cahiers du Brésil Contemporain, n. 16, 1990).”

Compreensivelmente, dada sua condição de diplomata, e servindo durante largo tempo sob o regime militar, ele evitou expor-se mais abertamente no cenário político nacional, mas não hesitava em imiscuir-se nos debates do momento nos meios acadêmicos. Assim, com seu jeito provocador, ele nunca se cansou de espicaçar os pretensos intelectuais de academia, tanto brasileiros quanto estrangeiros, em especial os franceses, especialistas em criar modismos intelectuais irrelevantes, mas de grande sucesso nas confrarias e nas tribos especializadas em temáticas obscuras e ritos de iniciação tão bizarros quanto totalmente desprovidos da lógica mais elementar e da necessária correspondência com os fatos. A sua luta obsessiva contra o irracionalismo na cultura contemporânea, assim como sua busca infatigável pelo predomínio absoluto da razão no trabalho intelectual, marcaram toda a sua trajetória de vida. Se tivesse sido alçado a posições mais altas na política nacional, José Guilherme Merquior teria se transformado em um grande construtor da nação, e não apenas em sua vertente democrática e social, mas sim no plano essencialmente cultural.

O nome de Merquior foi cogitado como chanceler de Fernando Collor, mas, como já tinha acontecido com Roberto Campos — sabotado duas vezes, a primeira como possível chanceler do general Figueiredo, em 1979, e também de Collor, em 1989 —, ambos sofreram forte oposição de colegas da carreira, provavelmente do próprio ex-chanceler de Geisel, Azeredo da Silveira, de quem Merquior recusou os cumprimentos quando de sua promoção a ministro de primeira classe (ou seja, a embaixador), alguns anos antes. Teria Merquior sido um grande chanceler para o Brasil? Provavelmente sim, mas creio que o Itamaraty seria muito pequeno, e muito burocrático, para ele. No cargo, poderia ter reformado rituais e comportamentos do estamento diplomático, num sentido iluminista, liberal e liberista; mas ainda assim isso seria pouco para o seu espírito libertário.

O que ele teria feito, certamente, seria iluminar com a sua notável inteligência os métodos e os objetivos de trabalho, colocando a razão e o sentido da História acima de quaisquer outras conveniências conjunturais, o que provavelmente teria provocado resistências burocráticas, corporativas e de grupos de interesse econômico. Seria tolerante com os pecados menores de uma burocracia tradicional como o Itamaraty, mas teria deixado uma marca indelével na instituição. Talvez empreendesse uma reforma radical na velha Casa de Rio Branco, inaugurando novos padrões de inteligência. Teria sido divertido…
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