BLOG ORLANDO TAMBOSI
Em uma escolha duvidosa, o ministério dos Direitos Humanos chamou a ex-deputada comunista Manuela D'Ávila para combater o "discurso de ódio". Jerônimo Teixeira para a Crusoé:
O
martelo e a foice cruzados configuram um símbolo de terror e opressão.
Representam o Gulag, o Holodomor, o muro de Berlim, os tanques que
esmagaram movimentos populares em Praga e Pequim, o paredón.
A
primeira vez que ouvi falar de Manuela d’Ávila foi quando ela apareceu
segurando a foice e o martelo em uma foto na hoje extinta Playboy. A
revista publicou uma entrevista breve com a jovem estrela do Partido
Comunista do Brasil, em novembro de 2006. Nas eleições do mês anterior,
Manuela elegera-se deputada federal pelo Rio Grande do Sul.
Encontrei
essa foto na internet. Também cheguei à capa da revista, na qual se
anunciava, entre outros temas, a conversa com “a comunista mais bonita
do Brasil”. Não consegui achar, porém, o texto da entrevista. Se a
memória não me engana, a entrevistada fez alguns considerações mais ou
menos favoráveis a Stalin. Lembro que a reportagem da Playboy perguntou
se ela aceitaria posar nua, e a resposta foi negativa.
A
entrevista é dispensável. Para meu argumento, basta a foto: Manuela, a
cabeça levemente inclinada, cruza os dois instrumentos de trabalho à
frente do corpo, a foice na mão direita e o martelo na esquerda. A
parede ao fundo é vermelha. Manuela está sorrindo.
Corte
rápido para 2023, primeiro ano do terceiro governo Lula. Manuela
d’Ávila agora coordena um grupo de trabalho constituído pelo Ministério
dos Direitos Humanos e da Cidadania para apresentar estratégias e propor
políticas públicas de “combate ao discurso de ódio e o extremismo”. O
grupo é composto de cinco representantes do ministério, mais 24
representantes da sociedade civil.
“Não
é difícil distinguir o que é discurso de ódio do que é mera opinião.
Nós estamos falando de crimes, crime do racismo, misoginia, LGBTfobia,
incitação à violência”, diz a coordenadora do grupo, segundo reporta
Chico Alves, colunista do Uol. Declaração esquisita, que parece esvaziar
o sentido dos trabalhos que ela vai comandar: se é assim tão fácil
distinguir discurso de ódio da opinião legítima, por que convocar 29
notáveis para debater o assunto? E se é de crimes claros e tipificados
que estamos falando, o debate de ideias será só perda de tempo – que se
chame logo a polícia para investigar e o Ministério Público para
processar os possíveis criminosos.
Manuela
diz ainda que o grupo buscará “mecanismos” para afastar as pessoas da
desinformação e do ódio, buscando uma “cultura de paz” através do
“letramento midiático” e da “cidadania digital”. Intenções generosas,
mas vagas. Embora eu encontre no grupo alguns nomes que respeito, sou
cético quanto às propostas, estratégias e mecanismos que porventura
sairão de discussões coordenadas pela ex-deputada. O tema com o qual ela
tem de se ver é bem mais amplo do que seus dogmas militantes permitem
supor. Ao contrário do que ela sugere, é um tema difícil, sim. A própria
Manuela já foi vítima de ataques e ameaças que podemos qualificar
tranquilamente como discurso de ódio (ainda que essa categoria careça de
uma definição rigorosa). Mas, como em toda matéria na qual há disputa
de ideias, nem sempre as coisas são tão claras e definidas.
Convido
o leitor a voltar às duas frases que abrem este texto. Manuela por
certo discordaria da avaliação que faço na primeira delas, ou não teria
aparecido em uma revista masculina segurando a foice e o martelo. Mas
essa avaliação ampara-se nos eventos elencados na frase seguinte. É fato
histórico que a foice e o martelo representam os regimes que produziram
os horrores citados – entre outros horrores. A margem para discordar da
avaliação sem negar os fatos é bastante estreita. Para os milhões de
vítimas dos regimes comunistas, a foice e o martelo são a própria
encarnação do discurso de ódio (símbolos visuais também fazem parte do
discurso político, ainda que os dicionários tendam a circunscrever a
definição de “discurso” à oratória e à expressão verbal). Manuela
estaria preparada para ver o símbolo que lhe é tão caro pelos olhos de
quem viveu e morreu à sua sombra?
Intelectuais
comunistas de países fora da área de influência soviética viviam em
negação. Não admitiam a natureza criminosa do “socialismo real”. O
negacionismo sobreviveu ao esfacelamento da União Soviética, enquanto os
partidos comunistas sobreviventes cediam aos confortos e sinecuras da
democracia burguesa. Alguns até abandonaram (ou pelo menos adiaram) suas
ambições revolucionárias. No Brasil, um comunismo mais ou menos
domesticado integrou-se placidamente ao cenário político, e com ele o
símbolo de um império falido ganhou uma sobrevida meio farsesca.
Com
o nazismo, não há espaço comparável para acomodações ou apaziguamentos.
É inequívoco: desfraldar a suástica em praça pública é apoiar
abertamente um projeto genocida. A bandeira vermelha com a foice e o
martelo que vemos em tantos comícios de esquerda admite leituras mais
variadas. Está convencionalmente associada às lutas da classe operária –
ainda que os regimes comunistas tenham cassado o direito de greve e
reprimido sindicados autônomos –, à memória romantizada de Prestes, à
resistência à ditadura militar, ao sonho de um “mundo mais justo”. Essa
ressignificação deu-se à custa de um forte apagamento da História.
Toda
essa conversa sobre velhos símbolos talvez pareça impertinente ao atual
momento brasileiro. O grupo de Manuela está trabalhando ainda sob o pó e
o rumor da destruição promovida pela Horda Canarinha no 8 de janeiro, e
não sobre os escombros do muro de Berlim. É preciso considerar, no
entanto, que um dos motores do bolsonarismo é o medo paranoico do
comunismo. As mais delirantes fantasias de dominação marxista correm
pelas redes sociais da direita extrema. Como um grupo liderado por uma
declarada comunista poderá desarmá-las?
O
desafio do tal “letramento midiático” é convencer o cidadão seduzido
pelo extremismo reacionário de que o atual governo respeita a democracia
e não oferece ameaça a quem não compartilha de sua visão de mundo. Essa
seria uma tarefa consideravelmente mais fácil se o presidente e os
partidos que o apoiam não cortejassem as piores ditaduras de esquerda.
Lula outro dia disse que os governos autoritários de Cuba e Venezuela
devem ser tratados com “carinho”. O maior animador do golpismo não está
exilado na vizinhança da Disney World. Está em Brasília, dando
expediente no palácio que foi depredado no início do ano.
Sem
qualquer esperança de ser ouvido, encerro com uma modesta sugestão para
o grupo de trabalho do Ministério dos Direitos Humanos.
Em
2020, publiquei, na falecida revista Época, um artigo sobre o
neostalinismo de rede social, fenômeno que ganhou projeção depois que
Caetano Veloso elogiou um de seus expoentes. Em busca de material para o
texto, encontrei no Youtube vídeos em que jovens extremistas discutiam a
necessidade de executar fascistas – era como chamavam qualquer um que
não fosse comunista – durante o processo revolucionário. Um deles até
dizia que não há contradição alguma entre o fuzilamento de opositores
durante a revolução cubana e o “humanismo” de Fidel Castro.
Esses
stalinistas nascidos pouco antes ou depois da queda do muro formam uma
turma minoritária, que não oferece risco efetivo para a democracia
brasileira. Ainda assim, discussões “teóricas” sobre o fuzilamentos
revolucionários não contam como expressões de amor, certo? Um bom
caminho para afirmar a autoridade e a isenção do grupo de trabalho seria
chamar as coisas pelo nome: esquerdistas que sonham com o extermínio de
opositores praticam o discurso de ódio. Seria uma mensagem clara e
vigorosa: a retórica armada, venha ela da direita ou da esquerda, é
ilegítima. Uma rejeição vigorosa das ditaduras – todas elas – deve ser
condição prévia para o exercício da “cidadania digital”.
Com Manuela d’Ávila na coordenação, não vejo o grupo tomando esse caminho.
Postado há 5 days ago por Orlando Tambosi
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