MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

sábado, 11 de março de 2023

Foice e martelo não são símbolos do amor

 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

Em uma escolha duvidosa, o ministério dos Direitos Humanos chamou a ex-deputada comunista Manuela D'Ávila para combater o "discurso de ódio". Jerônimo Teixeira para a Crusoé:


O martelo e a foice cruzados configuram um símbolo de terror e opressão. Representam o Gulag, o Holodomor, o muro de Berlim, os tanques que esmagaram movimentos populares em Praga e Pequim, o paredón.

A primeira vez que ouvi falar de Manuela d’Ávila foi quando ela apareceu segurando a foice e o martelo em uma foto na hoje extinta Playboy. A revista publicou uma entrevista breve com a jovem estrela do Partido Comunista do Brasil, em novembro de 2006. Nas eleições do mês anterior, Manuela elegera-se deputada federal pelo Rio Grande do Sul.

Encontrei essa foto na internet. Também cheguei à capa da revista, na qual se anunciava, entre outros temas, a conversa com “a comunista mais bonita do Brasil”. Não consegui achar, porém, o texto da entrevista. Se a memória não me engana, a entrevistada fez alguns considerações mais ou menos favoráveis a Stalin. Lembro que a reportagem da Playboy perguntou se ela aceitaria posar nua, e a resposta foi negativa.

A entrevista é dispensável. Para meu argumento, basta a foto: Manuela, a cabeça levemente inclinada, cruza os dois instrumentos de trabalho à frente do corpo, a foice na mão direita e o martelo na esquerda. A parede ao fundo é vermelha. Manuela está sorrindo.

Corte rápido para 2023, primeiro ano do terceiro governo Lula. Manuela d’Ávila agora coordena um grupo de trabalho constituído pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania para apresentar estratégias e propor políticas públicas de “combate ao discurso de ódio e o extremismo”. O grupo é composto de cinco representantes do ministério, mais 24 representantes da sociedade civil.

“Não é difícil distinguir o que é discurso de ódio do que é mera opinião. Nós estamos falando de crimes, crime do racismo, misoginia, LGBTfobia, incitação à violência”, diz a coordenadora do grupo, segundo reporta Chico Alves, colunista do Uol. Declaração esquisita, que parece esvaziar o sentido dos trabalhos que ela vai comandar: se é assim tão fácil distinguir discurso de ódio da opinião legítima, por que convocar 29 notáveis para debater o assunto? E se é de crimes claros e tipificados que estamos falando, o debate de ideias será só perda de tempo – que se chame logo a polícia para investigar e o Ministério Público para processar os possíveis criminosos.

Manuela diz ainda que o grupo buscará “mecanismos” para afastar as pessoas da desinformação e do ódio, buscando uma “cultura de paz” através do “letramento midiático” e da “cidadania digital”. Intenções generosas, mas vagas. Embora eu encontre no grupo alguns nomes que respeito, sou cético quanto às propostas, estratégias e mecanismos que porventura sairão de discussões coordenadas pela ex-deputada. O tema com o qual ela tem de se ver é bem mais amplo do que seus dogmas militantes permitem supor. Ao contrário do que ela sugere, é um tema difícil, sim. A própria Manuela já foi vítima de ataques e ameaças que podemos qualificar tranquilamente como discurso de ódio (ainda que essa categoria careça de uma definição rigorosa). Mas, como em toda matéria na qual há disputa de ideias, nem sempre as coisas são tão claras e definidas.

Convido o leitor a voltar às duas frases que abrem este texto. Manuela por certo discordaria da avaliação que faço na primeira delas, ou não teria aparecido em uma revista masculina segurando a foice e o martelo. Mas essa avaliação ampara-se nos eventos elencados na frase seguinte. É fato histórico que a foice e o martelo representam os regimes que produziram os horrores citados – entre outros horrores. A margem para discordar da avaliação sem negar os fatos é bastante estreita. Para os milhões de vítimas dos regimes comunistas, a foice e o martelo são a própria encarnação do discurso de ódio (símbolos visuais também fazem parte do discurso político, ainda que os dicionários tendam a circunscrever a definição de “discurso” à oratória e à expressão verbal). Manuela estaria preparada para ver o símbolo que lhe é tão caro pelos olhos de quem viveu e morreu à sua sombra?

Intelectuais comunistas de países fora da área de influência soviética viviam em negação. Não admitiam a natureza criminosa do “socialismo real”. O negacionismo sobreviveu ao esfacelamento da União Soviética, enquanto os partidos comunistas sobreviventes cediam aos confortos e sinecuras da democracia burguesa. Alguns até abandonaram (ou pelo menos adiaram) suas ambições revolucionárias. No Brasil, um comunismo mais ou menos domesticado integrou-se placidamente ao cenário político, e com ele o símbolo de um império falido ganhou uma sobrevida meio farsesca.

Com o nazismo, não há espaço comparável para acomodações ou apaziguamentos. É inequívoco: desfraldar a suástica em praça pública é apoiar abertamente um projeto genocida. A bandeira vermelha com a foice e o martelo que vemos em tantos comícios de esquerda admite leituras mais variadas. Está convencionalmente associada às lutas da classe operária – ainda que os regimes comunistas tenham cassado o direito de greve e reprimido sindicados autônomos –, à memória romantizada de Prestes, à resistência à ditadura militar, ao sonho de um “mundo mais justo”. Essa ressignificação deu-se à custa de um forte apagamento da História.

Toda essa conversa sobre velhos símbolos talvez pareça impertinente ao atual momento brasileiro. O grupo de Manuela está trabalhando ainda sob o pó e o rumor da destruição promovida pela Horda Canarinha no 8 de janeiro, e não sobre os escombros do muro de Berlim. É preciso considerar, no entanto, que um dos motores do bolsonarismo é o medo paranoico do comunismo. As mais delirantes fantasias de dominação marxista correm pelas redes sociais da direita extrema. Como um grupo liderado por uma declarada comunista poderá desarmá-las?

O desafio do tal “letramento midiático” é convencer o cidadão seduzido pelo extremismo reacionário de que o atual governo respeita a democracia e não oferece ameaça a quem não compartilha de sua visão de mundo. Essa seria uma tarefa consideravelmente mais fácil se o presidente e os partidos que o apoiam não cortejassem as piores ditaduras de esquerda. Lula outro dia disse que os governos autoritários de Cuba e Venezuela devem ser tratados com “carinho”. O maior animador do golpismo não está exilado na vizinhança da Disney World. Está em Brasília, dando expediente no palácio que foi depredado no início do ano.

Sem qualquer esperança de ser ouvido, encerro com uma modesta sugestão para o grupo de trabalho do Ministério dos Direitos Humanos.

Em 2020, publiquei, na falecida revista Época, um artigo sobre o neostalinismo de rede social, fenômeno que ganhou projeção depois que Caetano Veloso elogiou um de seus expoentes. Em busca de material para o texto, encontrei no Youtube vídeos em que jovens extremistas discutiam a necessidade de executar fascistas – era como chamavam qualquer um que não fosse comunista – durante o processo revolucionário. Um deles até dizia que não há contradição alguma entre o fuzilamento de opositores durante a revolução cubana e o “humanismo” de Fidel Castro.

Esses stalinistas nascidos pouco antes ou depois da queda do muro formam uma turma minoritária, que não oferece risco efetivo para a democracia brasileira. Ainda assim, discussões “teóricas” sobre o fuzilamentos revolucionários não contam como expressões de amor, certo? Um bom caminho para afirmar a autoridade e a isenção do grupo de trabalho seria chamar as coisas pelo nome: esquerdistas que sonham com o extermínio de opositores praticam o discurso de ódio. Seria uma mensagem clara e vigorosa: a retórica armada, venha ela da direita ou da esquerda, é ilegítima. Uma rejeição vigorosa das ditaduras – todas elas – deve ser condição prévia para o exercício da “cidadania digital”.

Com Manuela d’Ávila na coordenação, não vejo o grupo tomando esse caminho.
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