BLOG ORLANDO TAMBOSI
No país que quer ser o mais progressista do mundo em direitos femininos, esquerda se engalfinha por causa de lei sobre consentimento sexual. Vilma Gryzinski:
Até
2026, todos os postos de decisão da Espanha, sejam na máquina pública
ou em instituições particulares, devem obrigatoriamente ter paridade de
números entre homens e mulheres. E se as funcionárias assim contratadas
estiverem naquele período chato das cólicas mensais ou penando com
“dismenorreia secundária associada a patologias como a endometriose”,
uma licença menstruação vem a calhar.
Tudo
perfeito? Que nada, está a maior briga. E dentro do próprio governo de
coalizão, liderando pelo Partido Socialista Operário Espanhol, o
tradicional PSOE, com participação do Unidas Podemos, um equivalente, em
termos brasileiros, ao PSOL — e tão feminista que mudou o nome
original, Unidos Podemos, numa época em que ainda não existia o
“unides”.
A
briga é por causa da revisão da lei chamada “só o sim é sim”, aprovada
no ano passado, que procura corrigir injustiças históricas de
intimidação de mulheres na denúncia de crimes sexuais. Com esse intuito,
pende para o lado oposto: os homens passam a arcar com o ônus de provar
que obtiveram o consentimento explícito para qualquer interação sexual.
Num
caso clássico da lei das consequências indesejadas, a nova legislação
permitiu favorecer, retroativamente, casos já julgados de abuso sexual.
Já houve 721 revisões de sentença para menos de estupradores e 74
progressões de pena para regime aberto.
O
governo do primeiro-ministro Pedro Sánchez entrou em choque com o
Podemos por causa da revisão dessa lei. Detalhe: a ministra da
Igualdade, Irene Montero, é do partido de extrema esquerda. Disse ela,
com virulência habitual, que os partidos favoráveis à revisão “se dão as
mãos para voltar ao Código Penal da violência e da intimidação. É uma
má notícia para as mulheres, que conquistaram o consentimento como
direito”. E os rebaixamentos de penas? “Exigem uma resposta unitária
como governo e a partir da maioria feminista do Congresso”.
Esquerda
quando briga entra nesse modo extremamente detalhista. Para piorar, a
revisão do “só sim é sim” foi aprovada com o apoio do Partido Popular,
de centro direita, entre outros menores. Os extremos se encontraram,
como não é nada surpreendente, e o Vox, da direita mais dura, se
absteve. Irene Montero ficou fisicamente isolada durante a votação.
Não
foi o único racha provocado por questões pertinentes às mulheres.
Feministas tradicionais também boicotaram a ministra por causa da
chamada Lei Trans — já deu para desconfiar que o motivo é o mesmo:
acesso a espaços reservados a mulheres por qualquer homem que se declare
trans, mesmo sem fazer nenhuma intervenção médica. Já tem um homem
biológico condenado por violência sexual cumprindo pena em penitenciária
feminina — o mesmo fenômeno que acabou levando à queda do governo da
Escócia.
“Vocês
têm medo de dizer que há mulheres que têm pênis, ou seja, acham que as
mulheres trans não são mulheres”, provocou a ministra. Ouviu de volta
que não tem coragem de dizer o que é uma mulher — a pergunta que ronda
as esferas progressistas desde que, em nome da inclusão, a biologia
feminina tem sido mais do que contestada, negada.
Este
é um ano eleitoral na Espanha, o que tende a aumentar as inimizades no
campo da esquerda. Todas as pesquisas dão uma boa vantagem ao Partido
Popular, mas a maioria que permitiria a formação de um governo exigiria a
participação do Vox. O Podemos sofreu um considerável retrocesso e a
reconstrução da atual coalizão de esquerda parece difícil.
Uma
comissão europeia que visitou recentemente a Espanha esperando
encontrar um paraíso feminista onde o sistema patriarcal está sendo
abolido a poder de canetadas deixou o país em estado de “perplexidade”
diante das contradições como a da lei que deveria proteger mulheres em
denúncias de violência sexual, mas favorece homens condenados exatamente
por esse tipo de crime. A obstinação de Irene Montero em defender uma
legislação que evidentemente precisava ser corrigida foi comparada com
fanatismo.
É
uma prova de que, felizmente, mulheres pensam de maneiras diferentes,
não como um bloco unitário. E existem até as que não concordam com a
licença menstruação ou a política de cotas que passa a vigorar a partir
de agora, exigindo pelo menos 40% de mulheres no Conselho de Ministros —
ou seja, o governo —, nos conselhos de administração das grandes
empresas, nas associações profissionais e até nos júris que escolhem
ganhadores de prêmios subvencionados pelo estado.
“Demos
um passo em direção da igualdade efetiva que rompe o teto de vidro no
âmbito público e privado e consolida a Espanha como um dos países mais
avançados em unidade de gênero em nível mundial”, comemorou a
vice-primeira-ministra Nadia Calviño (Irene Montero não apareceu nessa
parte, por picuinha).
A
realidade mostrará se mudanças assim impulsionam avanços que demorariam
muito sem a canetada ou se uma imposição decorrente de caprichos
políticos sem contrapartida efetiva desconstrói os princípios da
meritocracia, sobre os quais se baseiam todas as sociedades saudáveis. E
se o estado tem poder para decretar a inclusão de mulheres na direção
de empresas privadas, o que mais pode impor?
Até a licença menstruação pode ser um abuso na concessão de direitos que prejudica, mais do que ajuda, as mulheres.
Será interessante ver o que acontece na Espanha nos próximos anos.
Postado há 3 days ago por Orlando Tambosi
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