Se António Costa é assim, que sentido faz exigir-lhe responsabilização pelas suas acções? Pedir-lhe que deixe de ser irresponsável é pedir-lhe que deixe de ser quem é, o que costuma ser impossível. Artigo do professor Paulo Tunhas para o Observador:
Lê-se
e ouve-se muitas vezes gente que pede a António Costa e aos seus
ministros que assumam, como se diz, responsabilidade política pelas
consequências danosas de algumas das suas acções ou das acções daqueles
que directamente deles dependem. Admito que o pedido faça sentido em
geral e que constitua parte integrante dos costumes democráticos. Mais: é
o que se vê nas democracias com que nos gostamos de comparar, onde essa
exigência tem, na maior parte dos casos, consequências manifestas, como
demissões e coisas do género. E, indiscutivelmente, seria bom que assim
também fosse em Portugal. No entanto, algo por cá se passa, desde que
António Costa chegou ao poder, que, dia após dia, torna o pedido um bom
bocado gratuito e, de qualquer maneira, destinado, desde o princípio, a
não ser satisfeito. E o que se passa tem a ver com a própria natureza
política de António Costa tal como os portugueses a conhecem desde que,
apesar de ter perdido as eleições para Passos Coelho, formou o seu
primeiro Governo.
Qual
é, então, a particular característica do seu génio que torna o pedido
de assunção de responsabilidades algo de fatalmente condenado ao
fracasso? Para o averiguar, nada melhor do que lembrar alguns exemplos
de decisões políticas que tomou livremente, em nada coagido por
necessidades impostas por qualquer conjuntura particular. A lista
poderia ser enorme, mas vou-me limitar a quatro casos bem conhecidos de
todos: a decisão de reduzir o horário semanal da função pública de 40
para 35 horas; a opção de reverter a privatização da TAP levada a cabo
por Passos Coelho; a eliminação das PPP na saúde; as medidas recentes
sobre a habitação, que incluem restrições severas ao alojamento local,
com a ameaça subreptícia de uma sua futura interdição, e o arrendamento
forçado de casas devolutas.
Não
é inútil lembrar as principais consequências destas quatro medidas. Por
ordem: uma perda brutal de eficácia dos serviços públicos, com
consequências particularmente gravosas no SNS, que a contratação de novo
pessoal conseguiu apenas mitigar, acompanhada de muito maiores gastos
pelo Estado (isto é, por maiores impostos); aumento exponencial de
problemas na companhia aérea, com resultados danosos para os cidadãos,
entre as quais a perda de 3, 2 mil milhões de euros gastos na TAP
“nossa”, a decisão nunca explicada aos portugueses de reverter a
reversão e, entre outras coisas, as presentes trapalhadas que todos
conhecem; o estado calamitoso em que caíram os hospitais que funcionavam
sob o modelo de PPP, com o inevitável aumento de gastos do Estado (mais
uma vez: aumento dos impostos que pagamos) e, sobretudo, a degradação
da saúde dos portugueses, que têm de recorrer a hospitais que não
conseguem atrair os profissionais de saúde de que necessitam; a mais do
que provável – praticamente certa – destruição da fonte de rendimento de
muita gente, que não só ajudava outra a ganhar algum dinheiro como
contribuía para a melhoria do estado do centro das cidades, completada
pelo desrespeito ostensivo pela propriedade privada dos cidadão.
Ora
bem, como designar um homem – António Costa – que toma alegremente
decisões deletérias que lesam profundamente a vida dos portugueses e que
se recusa terminantemente a admitir que erra em quase tudo o que
apresenta interesse substantivo para Portugal? Um tipo cheio de azar, a
quem o mundo, por sistema, finta as melhores e mais nobres intenções? Um
génio incompreendido, um visionário, a quem só o futuro longínquo
prestará um dia a devida homenagem? Ou, pura e simplesmente, um
irresponsável que, à custa de asneira sobre asneira, se tornou
irrespeitável?
Por
mim, inclino-me, é claro, para a terceira hipótese, acrescentando uma
outra particularidade: uma personagem de comédia. Com efeito, como notou
uma autoridade indisputável nestas matérias, as personagens das
comédias, ao contrário das das tragédias, que, num determinado momento,
reconhecem a falha trágica que cometeram, são naturalmente incapazes do
acto de reconhecimento dos seus erros. Não é, de resto, a única
diferença entre umas e outras. Ao contrário das personagens trágicas,
pessoas de mérito que possuem caracteres belos e nobres, melhores do que
os nossos (por isso o reconhecimento do erro comove os espectadores,
que imaginam que o mesmo lhes poderia acontecer), as personagens da
comédia, medíocres, possuem um carácter risível, pior do que o nosso,
que participa da fealdade pura e simples.
Se
António Costa é assim como disse (e penso que é), que sentido faz,
verdadeiramente, exigir-lhe responsabilização pelas suas acções? O seu
carácter político (é dele que falei) é radicalmente incompatível com a
assunção de responsabilidades. Pedir-lhe que deixe de ser irresponsável é
pedir-lhe que deixe de ser quem é – que deixe de ser medíocre –, o que,
tristemente, costuma ser impossível. Resta que a oposição faça o que
deve fazer, esperando que os portugueses se abstenham, por algum tempo,
de cultivar o seu tradicional gosto pela comédia, do Pátio das Castigas e
congéneres até ao teatro de revista. Ou que, pelo menos, se dêem conta
que na política ela não convém excessivamente.
PS1.
É raríssimo falar da Igreja, até porque, sendo ateu, não quero meter-me
à força na casa dos outros. Mais: não quero que a Igreja pense como eu
penso, embora faça um sincero esforço para perceber o seu ponto de vista
sobre as coisas do mundo, mesmo quando esse ponto de vista é
rebarbativo para muitos. Neste caso da pedofilia, no entanto – e até
porque ele diz respeito à sociedade como um todo –, não posso deixar de
ficar estupefacto com o que ouvi da boca de D. Manuel Clemente e D. José
Ornelas, entre outros. Até consigo concordar com – e levar a sério – D.
Januário Torgal Ferreira, o que, apesar dos meus pobres pecados, não
merecia. É-me particularmente surpreendente o argumento
auto-congratulatório de que a Igreja fez mais do que o resto da
sociedade para combater a pedofilia. Não fez e, pelos vistos, não
pretende fazer, embora haja obviamente dentro dela muitos que o fazem e
farão. Além de que a comparação entre a Igreja e a sociedade parece
colocar as exigências morais de uma e outra no mesmo plano. E eu que
sempre pensei que a Igreja não tinha exactamente essa ideia de si… Para
voltar ao tema do fim do corpo do artigo, a reticência face a um
reconhecimento pleno e consequente indica que a Igreja parece querer
confundir, com um mau gosto dificilmente qualificável, uma tragédia pura
e dura com uma comédia. Saberá o que está a fazer? E, se não souber,
espera que alguém lhe perdoe?
PS2.
Continuando no trágico e no cómico. Há grandes obras literárias que os
fazem correr paralelamente, permitindo-nos experimentá-los
simultaneamente, o que é uma lição útil para lidarmos com as nossas
tragédias pessoais. O Diário de um Louco, de Gogol, é um excelente
exemplo (Kafka também vem facilmente à cabeça). Mas é uma experiência
que, em certos casos, podemos igualmente ter na vida quotidiana. Eu, por
acaso, tenho-a sempre que vejo o major-general Agostinho Branco, na
CNN, a falar sobre a invasão russa da Ucrânia. Por um lado, a sua defesa
sistemática da posição de Putin, a custo velada pela pretensão a uma
análise puramente militar, pode provocar horror; por outro, tudo aquilo,
pela tensão permanente que existe entre o que ele quer dizer e o modo
como o pretende dizer – uma espécie de amor que não ousa dizer o seu
nome –, é extraordinariamente cómico. É um dos motivos mais tradicionais
do riso: vermos alguém que, enquanto fala, faz um esforço perfeitamente
óbvio para não poder ser acusado de pensar o que pensa, sem, no
entanto, resistir a revelá-lo. Peço encarecidamente à CNN que não o
abandone nunca. Até porque basta ouvi-lo duas vezes para ter vontade de
gritar: Slava Ukraini! E para, ao mesmo tempo que padecemos com a
nobreza do sofrimento dos ucranianos, nos rirmos da mediocridade
caricatural dos seus inimigos.
Postado há 3 days ago por Orlando Tambosi
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