Algo não está bem. Os sintomas são evidentes. A noção do certo e do errado começa a desaparecer. Mentiras patentes são fantasiadas em verdades fúteis. Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr. para a Gazeta do Povo:
Há,
no livre mercado das ideias, um assunto que está a ganhar volume e
tendência crescente: uma suposta crise de democracia. O tema é da mais
alta relevância, em especial face ao agudo descrédito da política atual.
Para a exata compreensão dos fatos, é fundamental traçarmos variáveis
que, uma vez verificadas, legitimarão a acertada conclusão a respeito.
Nesse contexto analítico, cumpre indagar: as democracias contemporâneas
estão impondo alguma restrição ao imperativo de eleições periódicas? O
princípio do sufrágio universal está sofrendo algum tipo de
relativização, restringindo-se a participação cívica ou partidária nos
pleitos eletivos? Temos, por fim, algum tipo de limitação ao exercício
da crítica política àqueles que exercem mandato popular?
Sem
adentrar em pormenores, pode-se dizer, regra geral, que caso houver
garantia e realização de eleições periódicas, respeitado o sufrágio
universal e a soberania do povo, com possibilidade de manifestação do
pensamento contra agentes políticos, estaremos diante de uma democracia
viva e pulsante. É claro que, a partir das entregas efetivas à
população, tal regime democrático poderá ser avaliado em termos
qualitativos; teremos governos melhores e outros, piores. Mas as
estruturas básicas da democracia estarão presentes, possibilitando,
assim, aprimoramentos tópicos e aperfeiçoamentos estruturais.
Deitadas
as premissas acima, é possível afirmar que o mundo ocidental, antes de
uma crise de democracia, expõe profundo déficit de liberalismo. É a
liberdade das pessoas, das empresas e das organizações que está sendo
alvo de ataques recorrentes; alguns sutis e silenciosos, outros
violentos e frontais. Em seu excelente Liberalismand its Discontents
(2022), o professor Francis Fukuyama, após sublinhar que é o liberalismo
– e não a democracia – que está sob cerrado ataque nos anos recentes,
destaca três razões fundamentais que justificaram o florescer das
sociedades liberais dos últimos séculos: (i) o liberalismo é uma forma
de contenção da violência, permitindo que grupos populacionais diversos
vivam pacificamente entre si; (ii) o liberalismo protege a dignidade
básica das pessoas, em especial a autonomia humana e sua capacidade de
fazer escolhas; (iii) o liberalismo promove crescimento econômico e
ganhos sociais daí decorrentes, protegendo a propriedade privada e a
liberdade de negociar.
Em
outras palavras, é o mundo livre e civilizado que está em rota de
retrocesso. O declínio liberal salta aos olhos, a violência – social,
verbal, virtual, pública e privada – é um traço da contemporaneidade. Ao
invés de bom senso e ponderação, vemos o vicejar do radicalismo e da
estupidez; o protecionismo nacionalista volta ameaçar a livre circulação
de mercadorias, comprometendo a margem de crescimento e produtividade
dos mercados globais; riscos geopolíticos agudos (guerras, bolhas
financeiras etc.), bem como catástrofes naturais (pandemias, desastres
ambientais etc), recolocam o medo como elemento de pânico e dominação
das massas.
Paralelamente,
as instituições que deveriam proteger a liberdade humana apresentam
disfunções categóricas. As instâncias de contenção do poder perderam
sincronia sistêmica, mutilando-se reciprocamente. O Legislativo parece
não mais representar o povo, criando leis flagrantemente contrárias à
vontade popular, como o fundo partidário e eleitoral, emendas
parlamentares secretas e violação do teto de gastos. O Executivo,
cambaleante e desnorteado, busca socorro no antes criticado pântano
político para fins sustentação e continuidade.
Atordoado,
o povo busca esperanças no valor justiça, mas vê sua Corte
Constitucional, por interpretações questionáveis, libertar corruptos,
instaurar procedimentos penais de ofício, criar insegurança jurídica e
instabilidade decisória, fragilizando princípios fundamentais
inegociáveis.
Ora,
algo não está bem. Os sintomas são evidentes. A noção do certo e do
errado começa a desaparecer. Mentiras patentes são fantasiadas em
verdades fúteis. O poder passa a fazer tudo, transformando,
gradativamente, o cidadão em nada. O fenômeno faz lembrar a advertência
inapagável de Hannah Arendt (1951), ao analisar as entranhas do
totalitarismo, no sentido de que “em um mundo incompreensível e em
constante mudança, as massas chegaram ao ponto em que, ao mesmo tempo,
acreditariam em tudo e em nada, pensariam que tudo era possível e que
nada era verdade”.
Do
ataque às liberdades individuais, chega-se ao golpe da liberdade
política. E, com ela, também se vai aquilo que se entende por
democracia. Até quando vamos negar a gravidade do que estamos vendo?
Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr., é advogado e conselheiro do Instituto Millenium.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

Nenhum comentário:
Postar um comentário