Se olharmos ao número e à geografia dos Estados alinhados contra Moscou e dos que se mantêm neutros, deparamos com o que poderá configurar-se como uma segunda edição de "The West against The Rest". Jaime Nogueira Pinto para o Observador:
Os
grandes conflitos estiveram sempre na origem das grandes mudanças, não
só na repartição territorial e na hierarquia dos Estados mas também nos
valores e princípios inspiradores e legitimadores da ordem
internacional.
Foi
da Guerra dos 30 Anos que nasceu a ordem consagrada pelos Tratados de
Vesfália, com a secularização dos poderes estatais e das razões da paz e
da guerra. Adoptaram-se então regras comuns na relação entre as
potências do Jus Publicum Europaeum que as diplomacias do século XVIII
passaram a seguir. Das guerras da Revolução e do Império nasceu a ordem
do constitucionalismo liberal, que depois de uma temporária restauração
dos valores do Ancien Régime, dominou os Estados europeus e se estendeu
aos novos Estados independentes do continente americano.
O
mundo dos finais do século XIX era um mundo eurocêntrico de monarquias
constitucionais, umas mais conservadoras, outras mais liberais – com as
excepções das repúblicas francesa e suíça. À margem do sistema liberal,
embora não ostracizada, ficava a Rússia czarista, que se olhava como um
baluarte do cristianismo e da tradição e mantinha, nas suas classes
dirigentes, um duelo surdo entre eslavófilos e europeizantes. A guerra
da Crimeia, em que a Rússia enfrentou o Império Otomano, aliado dos
franceses e dos ingleses, foi amargamente vista por Dostoievsky como uma
traição das nações do Ocidente à Cristandade. A derrota na guerra e a
morte do czar conservador Nicolau I levaram ao poder Alexandre II, que
libertou os servos e procedeu a reformas liberalizantes. Mas o czar
reformista foi assassinado à bomba em 13 de Março de 1881 pelos
populistas do Narodnaïa Volia.
Os
Estados europeus do final do século XIX agiam segundo as regras da
Realpolitik, afirmando claramente, e às vezes arrogantemente, os seus
interesses nacionais e os desígnios imperiais que os levavam à partilha
de outros continentes – onde, entretanto, se esboçavam as primeiras
reacções ao imperialismo.
As guerras do século XX
A
guerra de 1914-1918 veio acabar com essa ordem. Os impérios centrais –
alemão, austro-húngaro e otomano – saíram destruídos da Grande Guerra e
nos seus territórios surgiram uma multiplicidade de nações: umas, na
Europa, tornaram-se independentes; outras, no Médio Oriente e em África,
passaram a outras tutelas e subordinações. Mas o resultado mais
importante do conflito foi a Revolução Soviética de 1917, com o triunfo,
num grande Estado da Eurásia, de uma ideologia política revolucionária,
messiânica e internacionalista, com ambições de exportar a sua verdade e
o seu modelo de sociedade a todo o globo.
As
ideias, as ideologias, os movimentos e os regimes são reactivos, e a
relação amigo-inimigo é o motor mais forte e dinâmico da razão política,
que reage na razão directa do perigo. Assim, o medo do comunismo levou a
soluções radicais de estado de excepção, com o apoio das nascentes
classes médias. Nestas reacções anti-comunistas, além de movimentos
populares totalitários, como o fascismo, que triunfou em Itália em
Outubro de 22, contam-se, sobretudo, soluções nacionais-autoritárias,
geralmente patrocinadas pelos exércitos, como a ditadura de Primo de
Rivera, em Espanha, o Estado Novo em Portugal e uma série de movimentos
semelhantes na Europa Oriental e nos Balcãs.
Entre
as duas guerras, estas soluções propagaram-se pelo mundo não-europeu,
num clima reforçado pela grande crise do capitalismo euro-americano que
levou ao poder, por via democrática e eleitoral, o Partido
Nacional-Socialista de Adolfo Hitler. Hitler reclamava um destino
messiânico para o povo alemão e pretendia rasgar o Tratado de Versalhes.
Desta
conjuntura veio a Segunda Guerra Mundial e, com ela, o fim do mundo
eurocêntrico e a passagem do grande poder político-militar para uma
potência da Eurásia – a União Soviética – e outra da América – os
Estados Unidos. A Europa e o globo ficaram divididos por critérios e
padrões ideológicos, que, teoricamente, opunham um mundo livre,
democrático e liberal, a um mundo comunista e totalitário. Só que, do
lado do “mundo livre”, estavam muitos poderes não-liberais, já que a
divisão amigo-inimigo se fazia com base no anticomunismo.
O
desfecho final da Guerra Fria, em 1989-1991, ficou a dever-se ao
isolamento progressivo da URSS, conseguido pela Administração Reagan nos
anos que precederam a queda final de Moscovo com a aliança de duas
potências não-liberias: a monarquia absoluta e religiosa saudita e a
China comunista. A Arábia Saudita ajudou Washington a degradar
economicamente a União Soviética, fazendo baixar os preços do petróleo
com aumentos de produção; e a abertura de Nixon e Kissinger à China de
Mao, a partir dos anos 70, levou a que o comunismo de Pequim se
juntasse ao capitalismo liberal de Washington para combater o inimigo
comum.
Assim,
a vitória final do Ocidente na Guerra Fria teve como elemento
determinante a inclusão na aliança anti-soviética de Estados
autocráticos. Henry Kissinger lembrá-lo-ia várias vezes, voltando
recentemente a fazê-lo para criticar a pretensão da Administração Biden
de fazer do confronto com a Rússia uma luta entre democracias e
autocracias.
No
pós-Guerra Fria houve alguma euforia interpretativa entre os
vencedores, com a tentativa, teorizada por Fukuyama e impulsionada pelos
neoconservadores, de estender a todo o globo o modelo liberal
democrático anglo-saxónico de pluralismo partidário competitivo e de
economia de mercado. Nos últimos 30 anos, os factos desmentiram a teoria
e negaram a prática – com o terrorismo jihadista dos princípios do
século XXI, a afirmação de tendências nacionais autocráticas em
potências regionais, como a Rússia e a Turquia, e a coexistência do
capitalismo com uma direcção política central comunista, na República
Popular da China.
Transição
Mas
se a ordem global das democracias liberais inaugurada no fim da Guerra
Fria estava já posta em causa em importantes partes do mundo antes da
invasão da Ucrânia pela Rússia, foi a invasão que a veio definitivamente
desafiar. Os europeus tinham-se habituado a assistir, com o olhar
complacente e eurocêntrico dos “civilizados”, a conflitos semelhantes no
resto do mundo; mas no dia 24 de Fevereiro, o direito de guerra e de
paz, estabelecido pela Carta das Nações Unidas e condenatório da guerra
de agressão era, pela primeira vez, violado dentro de fronteiras
europeias.
A
guerra na Europa Oriental veio, assim, desferir um golpe sério à ordem
liberal e a uma globalização já ferida pela pandemia. Moscovo rasgou um
protocolo sobre a guerra e a paz que parecia intocável, embora várias
vezes tivesse sido violado noutros continentes (considerados, para o
efeito, “periféricos”).
Que
ordem sairá deste conflito e dos seus resultados? Não deixando de
condenar a invasão russa, que trouxe a guerra de volta à Europa e a
desgraça a milhões de ucranianos, não podemos ignorar as culpas do
Ocidente – dos Estados Unidos e da Europa – na condução da resposta.
Além
da imprudente declaração de Biden de que os Estados Unidos nunca
entrariam em guerra com a Rússia, passível de ser interpretada por Putin
como um subtil convite à invasão, ignorou-se levianamente todo um
dossier de avisos cautelares, de George Kennan a Henry Kissinger, sobre a
susceptibilidade securitária de Moscovo e de uma Rússia tantas vezes
invadida e devastada por mongóis, polacos, suecos, franceses e alemães.
A
política euroamericana de resposta à invasão tem também sido prolífera
noutros erros. Até agora, as sanções contribuíram essencialmente para
encher os cofres da Rússia e estimular a unidade pela negativa de países
com valores tão diferentes como a China, a Índia, a Turquia, o Brasil e
o México. A Rússia passou a vender por um preço mais alto o seu
petróleo e o seu gás, com Putin a dar-se luxo de cortar o fornecimento
aos sancionadores; e entre os Estados que se recusaram a alinhar com as
políticas euro-americanas de segregação e punição de Moscovo contam-se
mais de metade dos Estados da União Africana, a China, a Índia e parte
substancial dos países da América Latina e da Ásia.
Os 7 no castelo de Elmau e a NATO em Madrid
No
Castelo de Elmau, na Baviera, os sete mais ricos parecem ter chegado a
acordo quanto ao controlo dos preços do petróleo para travar os ganhos
russos e a inflação, deixando a cada Estado o estudo da forma técnica de
o conseguir. A limitação dos preços (“price caps”), sobretudo sobre a
comida e a energia, foi usada com sucesso na Grã-Bretanha e nos Estados
Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, porém, o sistema não tem
funcionado fora desse contexto e traz inconvenientes: o aumento da
burocracia de controlo; a alocação “política” (logo, menos eficaz) dos
recursos; a permeabilidade ao lobby e à influência; a supressão
meramente temporária da inflação, que sempre reaparece em força quando
os controlos são levantados. Uma outra sugestão, também americana, de
pressão sobre as seguradoras dos tankers russos que transportam o
petróleo, tinha já sido afastada por inoperacionalidade.
Também
a reunião da NATO, em Madrid, esteve dominada pelo conflito
russo-ucraniano, com os representantes dos países da Aliança Atlântica a
reafirmarem o seu apoio à Ucrânia. A Rússia ocupa agora o primeiro
lugar no pódio dos inimigos da organização, destronando o Terrorismo e a
República Popular da China. A grande notícia foi o anúncio da Turquia,
na terça-feira, de aceder à inclusão da Suécia e da Finlândia na Aliança
Atlântica, caso Estocolmo e Helsínquia atendam aos seus pedidos de
deportação e extradição de suspeitos de terrorismo. A Turquia assume,
mais uma vez, um papel de charneira e os curdos pagam, mais uma vez, os
custos pela reconciliação ocidental.
O
comunicado final da “nova” NATO, além de reafirmar a determinação e o
reforço da capacidade militar defensiva da organização, não esquece os
desafios ambientais e a inclusão de género – tornados itens de
preenchimento obrigatório nos comunicados e declarações.
O Ocidente e “os outros”
Se
olharmos ao número e à geografia dos Estados alinhados contra Moscovo e
dos que se mantêm neutros, deparamos com o que poderá configurar-se
como uma segunda edição de The West against The Rest.
Assim,
será bom que a ordem internacional a nascer deste conflito tenha uma
preocupação realista de consideração e respeito pelos interesses de cada
Estado e pelo equilíbrio de todos, dispensando proclamações ideológicas
e maniqueísmos institucionais.
Esta
disparidade entre “the West” e “the Rest” não surpreende e parece
acompanhar uma tendência que se observa desde o começo do século: a
avaliar pelos relatórios da Freedom House, a política de expansionismo
democrático teve efeitos perversos, já que, actualmente, apenas 20% da
população mundial vive em países livres (com 42% a viver em Estados
híbridos e 38% sob regimes autoritários ou totalitários). E se se fala
muito de “democracia iliberal” em relação à Hungria e à Polónia, ficam
na sombra os populismos de esquerda em grandes países das Américas –
México, Argentina, Chile e agora a Colômbia; países onde se vêm
afirmando regimes de esquerda, cujo constitucionalismo liberal deixa
muito a desejar. Não falando já da Venezuela e de Cuba; ou dos
movimentos de policiamento e cancelamento cultural do tipo Woke, a
operar em força no Ocidente pela lavagem cerebral, empenhando vastos
recursos financeiros em delirantes campanhas de alfabetização em
Newspeak, com a franca distribuição de fobias e de outras patologias a
quem não jure bandeira ou não se inscreva na mocidade activista.
Quando
uma ordem ideológica e geopolítica é posta em causa e não lhe sobreveio
ainda outra, entra-se num período de interregno, como o que agora
vivemos. Resta-nos esperar que o realismo e a força das coisas contenham
euforias e histerias – é que, tanto na guerra cultural como na guerra
real, uma escalada pode pôr em causa a própria viabilidade da
civilização e da espécie.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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