Ensaio de Anna M. Padoa Casoretti, publicado pelo Estado da Arte:
Se
pudessem falar, os jardins da Villa di Careggi, que abrigavam a sede da
Academia dos platônicos no pacato vilarejo de Fiesole, a poucos
quilômetros de Florença, provavelmente se calariam diante das
experiências de magia feitas por um inquieto conde e um austero padre.
Vozes maliciosas, contudo, não se calaram e enviaram para a posteridade
os registros das tardes em que Giovanni Pico e Marsílio Ficino se
debruçaram sobre livros de rituais mágicos para preparar poções
alquímicas um tanto singulares. Esse não seria um comportamento esperado
para dois tão ilustres filósofos. No Renascimento, entretanto, coisas
estranhas eram permitidas — desde que não chegassem aos ouvidos sempre
atentos da Igreja.
Um caldeirão de ebulições
As
concorridas reuniões que agitavam muitos dos entardeceres na bottega de
Botticelli, encravada em estreita viela na parte medieval do burgo,
eram apenas um reflexo do que ocorria nos núcleos mais aclarados do
centro-norte italiano, em uma estação em que se discutia sobre todas as
coisas — das sucessões de poder às artes liberais, das frescas edições
de livros às aplicações da matemática em vários campos. A descoberta da
perspectiva chegava para sinalizar que qualquer mudança no ângulo de
visão traria novos contornos para o mesmo objeto e, em sintomática
sincronia, antigos debates adquiriam outras formas a partir de renovadas
lentes. Caso das querelas sobre a alma, que, não exauridas nos séculos
anteriores, voltariam a recrutar platonistas, aristotélicos e suas
ramificações, dividindo espaço com as intensas polêmicas sobre a magia
natural e a astrologia, responsáveis por inflamar as mentes de teólogos,
filósofos e homens da ciência.
Pregadores
de toda espécie, anunciantes do fim do mundo e reformadores religiosos
encorpariam esse caldo. De fato, não foram poucos os testemunhos sobre
as instâncias de profecia que animaram particularmente a segunda metade
do século XV. O poeta Ludovico Lazzarelli ocupou-se em retratar os
acontecimentos em torno ao excêntrico alquimista Giovanni da Correggio
que, em certo domingo de Ramos, apresentou-se como profeta e novo
messias, vestido de preto, com uma coroa de espinhos na cabeça, montado
em um buliçoso cavalo negro (“nigrum frementemque equum”, Epistola
Enoch), seguido por esposa, filhos e discípulos em grande procissão,
declamando discursos entrelaçados de símbolos bíblicos e trechos
herméticos. Enquanto olfatos mais sensíveis farejavam heresias aqui e
ali, o frei Savonarola encontrava um terreno muito propício para suas
prédicas em prol de uma purificação religiosa. Nesse cenário, a tomada
de Florença pelos franceses, que ocorreria em 1494, apenas viria
fortalecer a convicção da proximidade de uma tragédia escatológica (para
um florentino, que sinal seria mais evidente da chegada do apocalipse
do que ter de conviver com os franceses?). E assim tomava forma o
espírito de um século.
Gutenberg e a febre dos astros
Os
astros passam a usufruir de um espaço relevante na vida cotidiana, nas
representações artísticas, na política, nas artes da guerra. A então
recente criação da prensa gráfica desencadeia uma profusão de novos
leitores, ávidos por toda forma de conhecimento, permitindo catalogar,
com certo grau de precisão, quais os livros mais vendidos e quais os
focos de maior interesse popular. Em termos quantitativos, os livros
mais procurados no século são os de Astrologia. Ninguém considerado
sério poderia negar os influxos celestes, e seria, por certo, um
equívoco reputar ao interesse por mapas natais um algo de banal, qual
distração para os pouco-esclarecidos apartados das discussões
científicas do Renascimento. O astrólogo, após passar os séculos
anteriores relegado às margens da sociedade — as doutrinas cristãs,
apoiadas nas confutações de Agostinho, não aceitavam o determinismo
astrológico que esvaziava os poderes da Graça —, torna-se agora um ator
social requisitado e esnobe.
Homens
notáveis dedicam-se ao estudo das estrelas. Como o geômetra e arquiteto
Leon Alberti, o erudito hebraísta Flavio Mitridate, o matemático e
astrônomo Paolo Toscanelli. E o fiel religioso Marsílio Ficino. Enquanto
teólogos cristãos mais ortodoxos confutam a astrologia, não poucos
membros proeminentes do clero, incentivadores fervorosos do movimento
humanista, consultam cartas astrais. É o que se sabe sobre o cardeal
Pietro d’Ailly, profundo conhecedor do De vetula — o poema
pseudo-ovidiano guardião de princípios astrológicos —, que, no início do
século XV, não hesitava em atribuir abertamente o nascimento de Cristo à
dependência dos céus. Ou, ainda, sobre o papa Inocêncio VIII, que pede
emprestado o astrólogo de Ludovico Sforza, o Mouro, para auxiliar na
cura de suas doenças. Transbordando as fronteiras do século e da
geografia, Martinho Lutero esperaria estrelas favoráveis para atravessar
uma ponte durante certa travessia arriscada. Muitas dessas narrativas
foram registradas e seriam publicadas por Johannes Kepler, na primeira
década do ‘600, na mesma obra em que o renomado astrônomo sustentaria
abertamente a existência da alma do Sol e das inteligências celestes,
através de “uma constantíssima experiência” que o teria convencido,
“mesmo relutantemente”, acerca “do influxo das conjunções astrais sobre o
mundo sublunar” (De Stella Nova).
A alma pendular de um tempo
Tal interesse difuso e caracterizante de uma época permite algumas elucubrações.
Se
o espírito do tempo era ofuscante em seu brilho, sua alma era
ciclotímica, transitando entre a euforia contagiante e o medo. No reino
humano nunca há estabilidade — e não seria diferente então. Os
eventuais períodos de equilíbrio alternavam-se com longas estações de
instabilidade e suscitavam nos homens perenes angústias quanto ao seu
destino. O esplendor dourado do Renascimento não era o bastante para
esconder a tragédia humana. A cada ciclo de epidemias e pragas, voltavam
a ecoar as palavras de Lotharii Cardinalis, o papa Inocêncio III, que,
no não tão distante século XIII, havia escrito que o homem não passava
de “indigno produtor de lêndeas, piolhos, vermes, urina e fezes” (De
miseria humane conditionis), fazendo lembrar a precariedade da
existência terrena. Era preciso encontrar um pouco de alento para as
vicissitudes. E o ser buscava seu ponto de equilíbrio e dignidade,
movido por fremente necessidade de elevação, de salvação e glória.
Para
pensadores metafísicos como Giovanni Pico della Mirandola, seria fácil
vislumbrar o trajeto que atravessava as estrelas para alcançar os locais
onde tal dignidade nunca mais seria perdida. Para o homem médio, cujo
tempo era contado para ganhar seu pão e aquecer sua casa, restava a
missa, que o havia preenchido nos séculos anteriores. Mas a dicotomia
apresentada pela religião oficial, que dividia a existência entre o
concreto e o espiritual, começava a dar sinais de não mais prover
suficiente alívio. Ele se via um bom cristão, ia à igreja, cumpria todos
seus deveres religiosos. O reino do espírito, contudo, se mostrava
distante demais, impalpável demais. A matéria, por sua vez, era causa
permanente de aflições e a densidade da vida mostrava-se tantas vezes
insuportável. A solução para esse dilema viria de respostas trazidas
pelos intérpretes dos mundos intermediários, mundos não tão materiais,
mas também não tão sublimes a ponto de serem inalcançáveis. Criava-se,
dessa forma, um hiato entre o divino e o mundano, preenchido pelo acesso
àquelas realidades moderadoras; e a religiosidade era complementada —
não substituída — por esferas mais tangíveis. Não é difícil compreender
por que, como bem observou Eric Weil, “o homem renascentista ia à missa
e depois ao astrólogo” (Pic de la Mirandole et la Critique de
l’Astrologie).
Amuletos e grimórios
Um
excesso de entusiasmo somado a um quê de curiosidade pueril fez com que
Pico e Ficino maquinassem algumas incursões pelos campos da alquimia.
Seus objetivos eram nada menos que altruístas e alguns foram descritos
pelo humanista Pietro Crinito (De honesta Disciplina): durante certo
surto de peste, o Conde não poupou esforços em encontrar a cura para o
mal, inclinando-se sobre poções feitas à base de óleos extraídos de
animais peçonhentos (“ex oleo scorpionum, linguisque aspidum et aliis
eiusmodi venenis confectum”); em outra ocasião, na tentativa de ajudar o
filólogo Ermolao Barbaro a se restabelecer, passou dias a preparar uma
fórmula alquímica que continha certos venenos de fundo. Já o Padre
embrenhou-se sobremodo em atrair e capturar as emanações estelares,
cujas virtudes, se concentradas sobre um objeto realizado “segundo as
corretas regras e proporções”, trariam um singular efeito terapêutico.
É
bem provável que as instruções para tais práticas tenham sido colhidas
no texto árabe Ghayat al-hakim (Manuscrito de Munique, 214), do qual uma
cópia constava na biblioteca de Pico. Traduzido para o latim com o
nome Picatrix, o célebre manuscrito de conteúdo mágico circulou na
Europa dos homens letrados especialmente na segunda metade do ‘400.
Ludovico Lazzarelli o utilizou, bem como, já no século seguinte,
Cornelio Agrippa, Giordano Bruno e Tommaso Campanella. Ficino o menciona
no De Vita Coelitus Comparanda, confessando tê-lo utilizado. Em suas
páginas, seria possível encontrar um compêndio de fórmulas mágicas,
algumas à base de ingredientes como o ópio, o haxixe e outras plantas
psicoativas, cujo consumo induziria a estados alterados e favoráveis à
clarividência. Presume-se que esses pormenores tenham atiçado a
disposição científica de nossos dois investigadores da natureza, mas não
se engane o leitor: eram outros os conteúdos que realmente chamariam
suas atenções. E estavam relacionados com as ocultas correspondências
existentes entre os estratos cosmológicos que compõem o universo.
Assim na terra como no céu
“Tudo
o que está contido no mundo maior está contido potencialmente no
menor”. Essas palavras poderiam ser atribuídas a Leonardo, que insistia
nas relações entre os dois cosmos correspondentes, o Todo e o Homem,
conforme anotações e rabiscos registrados em alguns Códices. A doutrina
da reciprocidade entre os mundos já havia sido ensinada anteriormente na
Escola de Chartres; e, também, a monja Hildegard von Bingen escrevera
sobre o assunto, no século XII. Mas aquelas palavras estavam escritas no
Picatrix — sob a aura de alguma autoridade mais antiga e exótica — e
ganhariam agora uma atenção maior.
Regras
de simetria e proporcionalidade compunham um tema caro à mentalidade
renascentista, e admitia-se, cada vez mais, que a matemática não poderia
estar desconectada das leis que regem o curso das estrelas ou as justas
quantidades de matérias-primas em uma composição. A repetição de seus
padrões em diferentes domínios implicava a presença de uma rígida
estrutura racional à base do real. Sob tal enfoque, a reciprocidade
existente entre os elementos físicos e os movimentos supralunares,
preconizada no Picatrix, concernia a um saber operativo que ultrapassava
as artes da alquimia natural, permitindo ao praticante conhecer suas
fórmulas para libertar-se delas — se assim o quisesse. De toda forma,
mesmo os mais convictos da efetividade dos padrões simétricos precisavam
de mediadores para guiá-los entre os reinos. Daí a necessidade dos
tradutores da linguagem das estrelas, dos filósofos e suas tentativas de
respostas, dos sábios capazes de descrever as imagens excelsas.
Não
por acaso, as três obras que fecham o século, encontrando ampla
repercussão, estavam alicerçadas sobre as invisíveis composições
harmônicas do cosmos — e traziam algumas das respostas procuradas. De
divina proportione, escrita pelo matemático franciscano Luca Pacioli,
agradaria ao público sobretudo em razão do fundamental capítulo acerca
da estrutura matemática do universo. De Vita Libri Tres assistiria às
suas edições se multiplicarem, enquanto Ficino continuava ameaçado de
condenação eclesiástica por suas opiniões sobre magia e astrologia. E o
Heptaplus, também aplicado às relações entre os diferentes estratos da
realidade, seria muito bem acolhido, apesar de seu autor, Pico della
Mirandola, ainda viver recluso em razão da punição por publicar suas
Novecentas Teses.
A união dos mundos
Se
o conhecimento dos astros permitia entender as adversidades da vida —
e, quem sabe, prevê-las —, o conhecimento de formas de magia
representava, para os muitos, uma tentativa de não se deixar dominar
pelo fatum. O aspecto mágico poderia salvar o trágico. Em alguma oitava
acima, onde motivações pessoais são transcendidas, aquelas chaves dariam
acesso a níveis onde o ser estaria mais próximo da contemplação de
Deus. Nesse locus, situavam-se as reflexões de Giovanni Pico.
Em
seu De Hominis Dignitate, alguns trechos são dedicados a elogiar uma
forma elevada de magia, diversa de formas ordinárias ou maléficas.
Lê-se, por exemplo, que as operações da correta magia procedem por
graus, ocupando-se das relações entre a vida humana, a natureza e as
realidades suprafísicas. Também as Teses abordam, em distintos
aforismos, os graus sucessivos que admitem o praticante; mas, ali, os
diversos graus da prática mágica, em sua totalidade, são descritos como
integrantes de um primeiro nível de aprendizado. Ou seja, no percurso
integral de aquisição de conhecimento, o ato de magia representa apenas
um grau inicial, tratando-se o conhecimento do mundo físico de uma etapa
introdutória. Para ultrapassar esse patamar — e os limites
estabelecidos pela natureza —, existem “devidas modalidades, conhecidas
pelos sábios” (Conclusio magica 17), desde que ele seja capaz de
ingressar por suas portas de iniciação. Tais palavras vão perfeitamente
ao encontro de um dos momentos essenciais do Picatrix, em que é
postulada a existência de um caminho iniciático chamado de “Natureza
Perfeita”, um percurso oculto dentro da Filosofia, desvelado à medida em
que se caminha e ao qual os filósofos participam em graus diversos.
A
que tipo de iniciação as duas obras se referem? Ambas tratam de uma
trajetória que leva o partícipe a passar por etapas de autoconhecimento e
transformação diretamente relacionadas ao conhecimento do íntimo
sistema de equivalências entre as camadas do real. Entendendo o universo
como um complexo único, articulado do mundano até os supramundanos, o
filósofo-iniciado torna seu único escopo o aprendizado e atuação sobre
os reinos, que conjuga com seu próprio intelecto, elevando-se do saber
natural ao teleológico, através de vários graus e métodos. Em certa
altura, porém, o texto piquiano adverte: qualquer das ferramentas
operadas pelo ser para obter conhecimento só é digna se tiver como
finalidade sua ascensão. Pois, como lembra o autor, “a forma de todo o
poder mágico tem sua raiz na alma humana”, mas somente naquela alma que
“se mostra permanente e não cadente” (Conclusio magica 12).
Os
interesses de Giovanni Pico por magia devem ser entendidos na medida de
seus interesses por filosofia. Isso explica sua definição da magia não
como forma de controle sobre as forças do mundo natural, mas como
ferramenta imprescindível para a unificação da natureza e do humano com
as múltiplas geografias do Todo. Ora, alcançar a unidade não é o
objetivo do filósofo? Mais do que realizar milagres, coloca-se qual um
servo a costurar as partes fragmentadas do ser, para depois as unir com
as esferas exteriores que se encontram em separação. Em caráter
privilegiado, o mago passa a ser entendido como sábio e o sábio torna-se
o alquimista supremo, para quem “a arte mágica não advém que por união e
atuação de coisas que na natureza existem em estado de potência e
separação”. O ato de conjugar o mundo, “maritare mundum”, torna-se,
assim, sua meta precípua e terminal. Esse é o legado deixado na
Conclusio Magica 13: “operar magia é, simplesmente, casar o mundo”.

Giovanni Pico della Mirandola
Anna
M. Padoa Casoretti é filósofa. Doutora em Filosofia Renascentista e
Mestre em Filosofia Antiga pela PUC-SP. Autora do livro Pico della
Mirandola, o Esoterismo como categoria filosófica, recém-publicado por
Edições Loyola. A tese de mesmo nome recebeu o prêmio Anpof de melhor
tese nacional de Filosofia do biênio 2019-2020.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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