O que o Brasil pode pretender no Brics agora, quando o grupo está sendo claramente manipulado pela China e pela Rússia, em função de interesses exclusivamente nacionais? Artigo do diplomata Paulo Roberto de Almeida, publicado pela revista Crusoé:
A
14ª Reunião de Cúpula dos Brics, organizada por Pequim, marcou uma
mudança importante na natureza e no funcionamento desse grupo de países.
Em sua declaração final, com a data de 23 de junho, seus membros
afirmaram que apoiavam a discussão para um processo de expansão. O
efeito foi rápido. Esta semana, Irã e Argentina apresentaram formalmente seus pedidos de ingresso.
Senegal, Nigéria, Arábia Saudita, Cazaquistão, Egito, Emirados Árabes
Unidos, Indonésia e Tailândia podem aderir mais adiante. À falta de um
acrônimo que possa incluir tantos integrantes, uma hipótese é que a
instituição ganhe o nome de Brics+. Mas o problema não é só de ordem
alfabética. A ampliação em curso serve principalmente aos interesses da
China e da Rússia, que buscam uma plataforma para se contrapor ao mundo
dominado pelos Estados Unidos. Trata-se de um perfil muito diferente
daquele de quando o grupo foi criado, em 2009, o que obrigará a
diplomacia brasileira a tomar decisões mais delicadas.
O
Brics expandido é mais um sintoma da mudança geopolítica que está
revertendo a ordem criada logo no início da Guerra Fria. Em 1947, o
Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos tomou a decisão de
manter uma inquestionável supremacia estratégica em termos militares e
operacionais. Isso se deu não apenas no confronto com possíveis
adversários, mas também em relação aos seus próprios aliados. A postura
foi mantida nas décadas seguintes, atravessando desde a fundação da
Otan, em 1949, a adoção da doutrina da destruição mutuamente assegurada
(MAD), nos anos 1950, a negociação de acordos de limitação de
proliferação atômica, a partir de 1968, e até a implosão do antigo
inimigo de 45 anos, a União Soviética. Nos anos 1990, os Estados Unidos
se encontravam no ápice de seu momento unipolar. O Muro de Berlim caiu, a
URSS se dissolveu em mais de uma dúzia de repúblicas independentes e os
americanos deram uma extraordinária demonstração de força na primeira
Guerra do Golfo, em 1991, expulsando as tropas iraquianas de Saddam
Hussein do Kuwait.
Os
americanos ainda obtiveram um feito extraordinário: separar a China da
União Soviética. A visita do presidente americano Richard Nixon ao
chinês Mao Tsé-Tung e a subsequente ascensão da China comunista à
cadeira da República da China no Conselho de Segurança da ONU, em 1971,
consolidaram a ruptura entre os dois grandes inimigos do capitalismo e
das democracias de mercado: a China se tornou uma aliada estratégica,
ainda que disfarçada, dos Estados Unidos, contra a União Soviética, em
relação à qual ela apresentava várias diferenças antigas e recentes nos
milhares de quilômetros de fronteiras e de terras roubadas em séculos
passados.
Essa
conquista extremamente significativa no quadro do seu planejamento foi
completamente perdida no curso dos mesmos anos 1990, quando os Estados
Unidos, depois de terem patrocinado a incorporação da China à economia
global, passaram a tratá-la como adversária estratégica. Essa inversão
de política motivou uma pequena revolução na política externa e na
postura global da China, que passou a encarar os Estados Unidos, não
como um aliado, num eventual confronto com a confusa Rússia desse
período, mas como uma potência hegemônica. Os americanos passaram a ser
vistos como um obstáculo à irresistível ascensão econômica e política da
China, o grande Império do Meio, temporariamente diminuído e humilhado
pelas grandes potências ocidentais e pelo Japão.
A
China incorporou o Brics neste contexto. De início, havia a iniciativa
de Rússia e Brasil de transformar um exercício intelectual articulado em
torno do acrônimo BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China), criado pelo
economista Jim O’Neill do Banco Goldman Sachs, em um grupo diplomático
com uma “carteira de negócios”. Assim, provavelmente, o Brics deve ter
sido o primeiro grupo de países que não nasceu em torno de um projeto
deliberado e racionalmente articulado pela vontade de seus membros
constitutivos – com vistas a objetivos comumente determinados, em função
dos interesses nacionais de cada um deles –, mas que foi induzido
externamente, com base unicamente em projeções de retornos ampliados a
partir de quatro economias então relativamente dinâmicas (Rússia e
Brasil degringolaram em seguida).
Não
demorou para que a pegada chinesa fosse sentida. Desde o início do
grupo, a China já representava mais da metade do seu peso total, em
termos de PIB, comércio, finanças, capacidade de investimento,
infraestrutura e demais indicadores econômicos. De certo modo, Pequim já
podia determinar para que direção caminharia o novo grupo, muito
artificial sob todos os demais aspectos políticos, diplomáticos,
culturais e, sobretudo, geopolíticos. A oportunidade não foi
desperdiçada. Na primeira reunião de cúpula dos quatro dirigentes, em
Ecaterimburgo, em 2009, a China buscou uma aproximação com países
africanos, pois tinha enormes projetos de investimentos no continente.
Em 2011, por sua influência, a África do Sul foi admitida no bloco, que
se converteu em Brics. O acrônimo foi preservado, mas já indicava um
grupo que pouco tinha a ver com o espírito inicial do seu “projetista”
de investimentos, Jim O’Neill.
A
criação do New Development Bank, o banco dos Brics, e do mecanismo de
empréstimos contingentes, na cúpula de Fortaleza, em 2014, pareciam
sinalizar uma maior adequação dos Brics aos seus objetivos originais.
Falava-se em promoção do crescimento econômico, em promover intercâmbios
comerciais e financeiros e em incorporar os cinco países de maneira
mais ou menos coordenada aos grandes circuitos da economia mundial.
Essa
tendência positiva e pró-globalização sofreu uma quebra em 2014, quando
a Rússia de Vladimir Putin invadiu a Ucrânia oriental e anexou a
península da Crimeia. A Rússia passou a sofrer sanções dos países
ocidentais, mas os demais membros do grupo permaneceram estranhamente
silenciosos em face dessa violação flagrante da Carta da ONU e do
direito internacional. Além disso, a China, totalmente empenhada na
realização da sua nova Rota da Seda, trilhando caminhos nas antigas
satrapias da União Soviética, começou a reforçar sua cooperação com a
Rússia, a fim de superar os obstáculos colocados pelos americanos para
conter o que eles consideram uma ascensão irresistível.
A
ampliação dos Brics é parte desse esforço. A China quer articular uma
coalizão suficiente de países para se contrapor às manobras americanas.
Esse é o ponto fulcral. A expansão também contempla os interesses da
Rússia, que precisa escapar do isolamento conduzido pelas principais
potências ocidentais após a invasão da Ucrânia. O Brics, portanto,
passou a ser usado para fins diversos daqueles concebidos inicialmente.
Não
se sabe ainda como a futura diplomacia brasileira – a atual já quase
não conta mais – vai reagir ante à incorporação de novos membros ao
Brics. Outro ponto a acompanhar será se nossos representantes
continuarão demonstrando a mesma indiferença em relação a uma guerra
cruel na Ucrânia, que claramente afronta todos os valores e princípios
da política externa e diversas cláusulas constitucionais das relações
internacionais.
Esse
é o quadro que se apresenta ao Brasil. Durante o governo de Lula,
quando o Itamaraty era chefiado por Celso Amorim, o país patrocinou,
como um aprendiz de feiticeiro, uma aventura diplomática, ao lado da
Rússia de Vladimir Putin e Sergey Lavrov. A ideia foi aceita quase que
de imediato pela China e pela Índia, cada um deles de acordo com suas
próprias razões. A África do Sul entrou de arrasto, para atender aos
desejos chineses, e outros países estão batendo à porta.
O
que o Brasil pode pretender no Brics agora, quando o grupo está sendo
claramente manipulado pela China e pela Rússia, em função de interesses
exclusivamente nacionais, tanto no plano estratégico, quanto no dos seus
objetivos táticos? Essa é uma pergunta que não terá resposta imediata,
nem pode ter, em virtude da conjuntura eleitoral brasileira, mas que
permanece como uma das definições de grande diplomacia a serem
equacionadas no futuro de médio prazo.
O
fato é que o Brics se tornou um animal muito grande para ser
encabrestado por um país de recursos limitados como o Brasil. Não temos
claramente como controlar a direção desse grupo, para satisfazer
objetivos puramente nacionais de crescimento econômico e de
desenvolvimento social, os quais deveriam ser as molas básicas da nossa
política externa. A questão de quem manda no Brics está posta. O Brasil
saberá respondê-la?
Paulo Roberto de Almeida é diplomata e autor do livro A grande ilusão do Brics: e o universo paralelo da diplomacia brasileira
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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