Para não ser acusado de apropriação cultural - sem a qual não existiria nenhum prato no mundo - o chef inglês tem “equipe de especialistas”. Vilma Gryzinski:
Yakisoba, macarrão à carbonara ou ceviche? É tudo complicado. Não de fazer, mas de ensinar receitas.
Esta
é a conclusão a que chegou o chef inglês Jamie Oliver, que já vendeu
quase 50 milhões de livros de receitas, embora os mais de vinte
restaurantes que havia no país com sua assinatura tenham falido.
Celebrizado
pelo jeito despachado – alguns dizem que artificialmente turbinado – de
fazer e popularizar uma infinidade de pratos em programas de televisão,
Jamie, como é universalmente conhecido, disse numa entrevista à revista
dominical do Times de Londres que tem “assessores de ofensa”.
O
que fazem eles? Compras, preparativos, mis en place? Controle da
enxurrada de palavrões que o chef profere? De jeito nenhum. A “equipe de
especialistas em apropriação cultural” analisa suas receitas para ver
se ele não está incorrendo no supremo crime de enriquecer suas produções
com comidas estrangeiras da categoria complicada – ou seja, de minorias
da população britânica.
“A
primeira reação é cair na defensiva e dizer: ‘Pelo amor de Deus’. Daí
você pensa: ‘Bom, não quero ofender ninguém’”, disse ele sobre o
processo que hoje é seguido, em escala muito maior, por grandes
empresas, em especial dos Estados Unidos e do Reino Unido, os focos onde
o politicamente coreto se origina e se irradia pelo mundo ocidental.
Jamie
teve uma experiência infeliz em 2018, quando lançou uma versão
instantânea para fazer “jerk rice”, um arroz cheio de temperos e
pimentas variadas que é típico da Jamaica.
Foi
acusado pela parlamentar Dawn Butler, filha de jamaicanos, da esquerda
do Partido Trabalhista, de praticar a temida “apropriação cultural”. Ela
disse que Jamie estava desvirtuando a mistura de temperos,
originalmente usada para fazer uma marinada para frango ou carne.
O
problema está no advérbio “originalmente”. A receita jamaicana brotou
espontaneamente do solo? Não usou especiarias que não existiam na
África? E o “original” africano, trazido por escravos, não tem também um
histórico de apropriações?
É
claro que se Jamie Oliver fizer uma moqueca ou um acarajé, muitos
brasileiros vão reclamar que os pratos foram desvirtuados (embora uma
simplificação do divino bolinho de massa de feijão pudesse ser uma
benção para os que não nasceram ao pé de uma banca baiana).
“Sem
apropriação cultural só existe estagnação”, disse o crítico de
gastronomia Jonathan Meades no ano passado, quando a discussão
reaflorou.
Meades
deu como exemplo um restaurante inglês que ofereça cassoulet. “Os
guardiães da autenticidade não precisam se preocupar porque este
restaurante estaria perseguindo o impossível”, comentou, alinhavando as
possíveis origens do delicioso prato com feijão branco, linguiça e
partes de carne de pato, porco ou até carneiro. A origem dele é dada
como Toulouse, mas também pode ter vindo de Carcassone e até da pouco
conhecida Auch.
Até
Nigella Lawson, a deusa da cozinha, já enfrentou uma pancadaria danada
desfechada por cozinheiros italianos por causa de sua receita de
carbonara em que o creme fresco entra no lugar das gemas cruas.
Como
são brancos e pertencentes ao mundo ocidental rico, os italianos
reclamam e o carbonara vai mudando (entre eles próprios, não existe um
consenso único sobre a receita). A coisa se complica quando a
“apropriação” é de pratos típicos de países não-brancos.
A
sensibilidade exacerbada a qualquer coisa que soe como “apropriação”
ou, pior ainda, racismo implícito, foi exemplificada por Priyamvada
Gopal, indiana que é professora de estudos pós-coloniais em Cambridge.
Ela acusou um historiador especialista em era medieval no Mediterrâneo,
David Abulafia,de ter chamado um colega, David Olusoga, de “eloquente”.
Não
seria um elogio, uma forma respeitosa e sem mácula de se referir a um
intelectual? Claro que não, reclamou a professora. Chamar intelectuais
“de cor” – Olusoga é filho de pai nigeriano – de eloquentes ou
articulados é uma forma condescendente de dizer que até falam bem, mas
“não têm substância”, segundo Gopal.
“Eu
claramente vivo num círculo encantado, pois ninguém com quem falei
desde que ela levantou suas objeções aceita que ‘eloquente’ tenha esse
significado oculto”, escreveu no Spectator Abulafia, que é descendente
de judeus sefarditas.
“Eloquência
é relacionada a persuasão. Péricles era eloquente. Churchill era
eloquente. Martin Luther King era eloquente. A eloquência deles era
efetiva. Por acaso, dois eram brancos, um era negro”, defendeu-se o
professor emérito, usando argumentos que, se falados, seriam eloquentes –
e inúteis, considerando-se que o interlocutor, ou interlocutora, não
opera no campo da lógica, mas de princípios maximalistas que buscam
ofensas raciais em tudo, seja num prato de arroz bem temperado ou num
debate acadêmico.
Esforçar-se
para não ofender ninguém – a ideia original do politicamente correto,
antes que virasse um instrumento de poder, em especial no mundo
acadêmico – é um comportamento moralmente saudável e elogiável.
Às
vezes pode criar dilemas, como o vivido atualmente em relação ao físico
austríaco Erwin Schrödinger, cujo histórico de interesse por meninas
adolescentes foi exposto pelo jornal Irish Times.
O
Prêmio Nobel, que ficou conhecido popularmente por causa da experiência
teórica chamada “o gato de Schrödinger – um gato que, dentro de uma
caixa imaginária, podia estar simultaneamente vivo e morto por causa do
caráter instável intrínseco do mundo quântico – “apaixonou-se” por
meninas muito jovens. Uma delas, de 14 anos, de quem era professor de
matemática, chegou a engravidar dele aos 17. Outra que entrou na lista
de mulheres e meninas que ele deixou anotada em seus diários tinha 12
anos.
Alguns
fatos já eram conhecidos, outros foram apontados pelo jornal da
Irlanda, onde o gênio da física morou durante 17 anos. A sociedade pode
ter se tornado mais sensível a anomalias assim. O nome de Schrödinger,
que tinha cidadania irlandesa, foi tirado do salão de palestras de
física do Trinity College, universidade de Dublin.
É
um assunto bem mais sério do que a “apropriação” de receitas de cozinha
e mostra como não existem respostas únicas para questões complexas.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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