Neste pequeno manual podemos introduzir-nos no mundo complexo da luta pela justiça social ou, na versão anglo-americana, tornarmo-nos woke: iluminados ou socialmente justos. Patrícia Fernandes para o Observador:
“Que
vivas tempos interessantes!”: a maldição de suposta origem chinesa
carrega um mundo de ambiguidades. Todos queremos ter vidas
interessantes, mas o sentido maldito da frase invoca tempos turbulentos,
incertos, de risco. Todos queremos ter vidas interessantes, mas
quereremos vidas marcadas por camadas tais de complexidade e incerteza
que nos tornamos incapazes de apreender adequadamente o mundo?
Um
momento fundamental para os tempos interessantes que vivemos terá sido o
11 de setembro e o novo mundo que se apresentou, mas as tendências de
conflitualidade, polarização e complexidade já existiam e foram-se
tornando progressivamente mais evidentes nas últimas duas décadas. O
espaço político complicou-se e tornou-se cada vez mais difícil
acompanhar os novos movimentos, espartilhados em múltiplas
reivindicações, posicionamentos, imposições. Essa complexidade
manifesta-se de forma clara ao nível do vocabulário: a introdução de
novas palavras, conceitos, ideias dificulta a apreensão e compreensão do
real. E a dificuldade é aumentada pelo facto de a maior parte desse
vocabulário vir da língua inglesa e, por isso, impor-se-nos como um
objeto que se estranha na mesma medida em que se entranha. A conclusão
só pode ser a de que a situação atual é um verdadeiro pé-de-demónio, como diria o senhor de Gondomar.
Felizmente,
o mundo dos livros continua a ser útil para que possamos compreender o
mundo e fazer a travessia entre o fumo das novas palavras, conceitos e
ideias que marcam a discussão política atual. Um contributo
indispensável é, para esse efeito, o guia publicado pela Guerra &
Paz em março deste ano: Woke: um guia para a justiça social.
Neste pequeno manual podemos introduzir-nos no mundo complexo da luta
pela justiça social ou, na versão anglo-americana, tornarmo-nos woke
(iluminados ou socialmente justos). Em vinte capítulos, a autora Titania
McGrath permite a familiarização com conceitos tão complexos e
relevantes como “patriarcado”, “ecossexualidade”, “apropriação
cultural”, “androcausto”, “islamofeminismo”, “interseccionalidade”. Como
a autora deixa claro, não é possível lutar por uma sociedade mais justa
sem compreendermos estes conceitos, bem como as cinco ideias seguintes.
Em
primeiro lugar, importa considerar que Titania McGrath se apresenta
como uma poetisa feminista, radical e interseccionalista. Tal significa
que o alvo de luta mais importante quando temos em vista uma sociedade
justa é o patriarcado. Aqui reside o mal absoluto da sociedade atual e
essa é a primeira informação fundamental que todas as mulheres devem
adquirir: “Tenho palavras de sabedoria para todas as mulheres jovens.
Não importa o que fazes na vida, nem o êxito que tenhas, serás sempre
uma vítima do patriarcado. Compreender isso é a chave para o teu
empoderamento”. Neste sentido, uma sociedade mais justa implicará criar
um mundo radicalmente novo e verdadeiramente igualitário: “Só
alcançaremos a verdadeira igualdade quando as mulheres forem mais
valorizadas do que os homens.”
Mas
a luta contra o patriarcado é muito mais do que a luta contra uma
sociedade dominada por homens. É que estes homens têm uma característica
específica: são homens brancos. E, por isso, a luta contra o
patriarcado é a luta contra o racismo e a brancura: “Se quisermos
concretizar a utopia woke, os brancos devem expiar ou rejeitar
completamente a sua brancura”, uma vez que “as pessoas brancas são
indiscutivelmente privilegiadas, independentemente da sua classe,
situação económica, saúde, idade, aparência ou se têm ou não todos os
membros intactos”.
É
nessa medida que se revela fundamental a luta interseccional. Se
estranham o conceito, a autora apresenta uma definição esclarecedora: “A
interseccionalidade funciona como uma rede em que os grupos
marginalizados se entrecruzam em vários pontos da matriz da perseguição.
Vamos pensar nisto como uma hierarquia. Por exemplo, uma mulher está
oprimida, porque vivemos num sistema patriarcal, mas não tão oprimida
como uma mulher hispânica, que, por sua vez, não é tão oprimida como uma
lésbica hispânica, que, por sua vez, não é tão oprimida como uma
lésbica transexual hispânica com herpes e assim por diante”.
A
interseccionalidade reside então no reconhecimento de que 1) toda a
sociedade é marcada por dinâmicas de poder e opressão, 2) há vários
grupos de oprimidos, 3) só é possível alcançar justiça social se todos
esses grupos se envolverem na mesma luta. Especialmente na luta contra a
verdade factual, a ciência e o conhecimento. Afinal, “todo o
conhecimento é uma construção patriarcal, porque foi adquirido ao longo
de séculos de totalitarismo masculino”. Contra o conservador Ben Shapiro
e a ideia por si repetida de que “os factos não se importam com os teus
sentimentos”, McGrath não tem dúvidas em afirmar: “O oposto é que é
verdadeiro. Os sentimentos não se importam com os teus factos. É assim
que funciona a justiça social. Se sentes que algo é verdade, então é
verdade”. De facto, “partir do princípio de que o conhecimento é mais
importante do que os sentimentos é uma demonstração de tudo o que está
errado na ciência moderna”.
Por
último, devemos reconhecer o principal obstáculo ao sucesso da luta: a
sacrossanta liberdade de expressão. Este suposto direito representa um
mero escape para que os representantes do mal possam expressar ideias
falsas e manipuladoras na esfera pública e deve ser combatido. A nossa
missão deve passar, então, por exigir “que o Estado se comprometa mais
para acabar com o ódio”, pois “o único modo de acabar com o fascismo é
se a polícia puder prender as pessoas pelo que dizem e pensam.”
Os
méritos pedagógicos do livro ficam, assim, claros. Mas talvez seja
melhor terminar com uma referência importante: Woke: um guia para a
justiça social é uma sátira política. Titania McGrath é uma personagem criada pelo comediante irlandês Andrew Doyle
(será relevante dizer que se afirma de esquerda?), que tem satirizado o
politicamente correto, as políticas identitárias e as reações ao
Brexit. Os leitores de Doyle encontrarão neste livro uma incursão
inteligente e necessária aos exageros e disparates que marcam o espaço
público atual. E, para já, sem correr o risco da censura prevista na
mais recente Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital.
De facto, o polémico art. 6.º abre exceção à sátira e à paródia. Mas,
caso fosse português, Andrew Doyle perceberia rapidamente que essa
exceção foi resultado de falta de ponderação. No mundo woke que nos
ameaça, “o propósito da comédia é educar as massas em questões de decoro
social e sobre os limites da liberdade de expressão. Se a comédia tem
demasiada graça, é pouco provável que alcance o seu objetivo.” Assim,
podemos facilmente presumir que o art. 6.º terá vida curta: a exceção
prevista para a sátira e a paródia tem de cair.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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