O melhor disso foi a cartilha editada por um conselho da prefeitura de
Belo Horizonte com orientações sobre o que os foliões deveriam evitar:
fantasias de índio, enfermeira sexy, a marchinha clássica de Lamartine
Babo etc. Artigo de Fernando Schüler, publicado pela Gazeta:
O Cacique de Ramos teve de se explicar. O bloco desfila com fantasias
de índio desde 1960, mas agora a coisa complicou. “Os pioneiros do
bloco tinham nomes indígenas e eram ligados à umbanda.” Não entendi a
relação com a umbanda. Possivelmente era um salvo-conduto. Alessandra
Negrini também não escapou. Teve de se explicar e se saiu bastante bem.
“A luta indígena é de todos nós, por isso tive a ousadia de me vestir
assim.” Bingo. Em vez de pedir desculpas, um pouco de retórica política.
Contra-ataque perfeito.
Curiosa essa invasão da retórica política sobre a indisciplina e a
irreverência que sempre marcou (ao menos é isso que imaginávamos) nosso
carnaval. Não se trata da sátira política (sempre bem-vinda, aliás), mas
o seu contrário: o disciplinamento da sátira pela correção política.
O melhor disso foi a cartilha editada por um conselho da prefeitura
de Belo Horizonte com orientações sobre o que os foliões deveriam
evitar. Fantasias de índio, enfermeira sexy, a marchinha clássica de
Lamartine Babo, touca com tranças, homem vestido de mulher. Esse último
item com um requinte: nem de “noiva”.
Talvez tenha sido nosso primeiro carnaval de cartilha, mas presumo que seja o primeiro de muitos.
Nessas coisas todas, o que me surpreende é o excesso de convicção. A
certeza de que alguém tem o direito de mandar na vida dos outros.
Antônio Risério chamou isso de “fascismo identitário” em seu livro
recente. Fascismo, aqui, é o culto do dogma, a negação do diálogo, a
sede de controle. Se o termo é adequado cada um pode julgar.
Vai aí uma marca do nosso tempo: a hiperpolitização do cotidiano.
Jonathan Haidt trata do tema em seu The Coddling of the American Mind. A
vigilância coletiva nos câmpi universitários, os safe spaces, a
supressão da divergência e proteção a qualquer coisa que caiba sob o
rótulo de ofensivo.
Parece evidente que as redes sociais têm muito a ver com isso. A
conexão digital fez com que, subitamente, passássemos a viver juntos. Da
multiplicidade que marca as grandes sociedades abertas, passamos a
funcionar como uma comunidade. Comunidade de bisbilhoteiros e
“reguladores da vida dos outros”, como escutei de um amigo professor
tempos atrás.
Sobre a atual histeria identitária, Risério toca na questão central:
como é possível que movimentos que iniciaram “como luta pelo
reconhecimento do outro tenham terminado como uma luta que rejeita o
outro, a diferença, a outridade”? Não vejo resposta simples a essa
pergunta. Mas ela deve ser feita. De um movimento múltiplo e generoso,
afirmativo de direitos, migramos a uma guerra mesquinha pelo
disciplinamento do humor, pela correção da literatura, supressão de
marchinhas, regulação de fantasias e festas populares.
Talvez tudo tenha saído um pouco de controle quando as guerras
culturais invadiram o mundo da política e qualquer alegação de
fragilidade tenha se tornado um caminho fácil para a virtude. Tudo feito
à moda banal da radicalização e do exagero que marca a democracia
atual.
Há muitos riscos aí. Um deles é a descredibilização dos temas de fato
pertinentes à exclusão e o preconceito. Submeter a luta antirracista ao
julgamento seletivo e à politização barata é perder de vista a
seriedade dos temas que ela de fato envolve no dia a dia.
Há um elemento político: só quem tem ganhado, com a histeria
identitária, é um certo direitismo conservador que declara guerra ao
politicamente correto e passa a ser visto, por irônico que pareça, como
libertador. Há muitos bons trabalhos de sociologia mostrando isso,
infelizmente não aqui pelos trópicos.
No mais, arriscamos terminar convertendo o país da transgressão e da
antropofagia em uma nação puritana. Depois do ódio político, a chatice
cultural. Acabaríamos cantando hinos gospel no carnaval. Nesse dia
bateria uma saudade, não tenho dúvidas, de algumas velhas marchinhas que
deixamos para trás.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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