No Brasil, não vivemos na cultura do encarceramento. Vivemos na cultura
da impunidade. Enquanto for assim, podemos afirmar que o Brasil prende
de menos. Artigo do juiz e professor André Gonçalves Fernandes,
publicado pela Gazeta:
Recentemente, depois da divulgação dos números da segurança pública
pelo governo federal, assisti a um debate sobre a “cultura do
encarceramento”, composto por um sociólogo, dois militantes
esquerdistas, um professor universitário engajado, dois políticos
jacobinos e um ator global. Como senti falta de um integrante da classe
jurídica, que costuma andar com os pés na realidade das coisas, o
resultado não poderia ter sido outro: um mundo de sonhos, alimentado por
filosofias românticas e vagas e recheado por muita narrativa bem
atraente, a captar somente os ouvidos e a razão dos telespectadores
incautos ou desavisados.
O debate girou em torno daquelas mantras já desgastados pela mídia
que comprou essa narrativa politicamente correta: “encarceramento
excessivo”, “prisão preventiva desnecessária”, “persecução penal
racista”, “punitivismo fascista”, entre tantas outras expressões tanto
mais ocas quanto proselitistas.
Esse rol de expressões tem um forte apelo hermenêutico e parte de uma
premissa antropológica bem clara. O preso, provisório ou condenado,
seria um indivíduo que expia uma culpa que não lhe pertence, mas deve
ser atribuída à sociedade. Dito de outra maneira, se um indivíduo rouba
ou mata, a responsabilidade não seria dele, mas da sociedade que, de
alguma forma, omitiu-se no atendimento de suas necessidades básicas
existenciais. Então, como efeito, ele poderia avocar uma espécie de
“alvará para delinquir” e o resto seria apenas uma questão de escolha da
vítima.
O erro dessa visão está no determinismo que lhe serve de suporte
intelectual. Na verdade, a carência material pode predispor alguém para o
cometimento de um crime, mas jamais condicioná-lo, porque sempre há um
momento em que o sujeito decide livremente pelo “sim” ou pelo “não”, o
que se dá também quando sua consciência prevê o resultado e sua vontade
nega um agir, contudo, mesmo assim, ele assume o risco pelo advento do
mesmo resultado.
No entanto, voltemos ao debate. De todos aqueles mantras surrados, o
tal “encarceramento excessivo” realmente ganhou destaque. Aqui, convém
fazer alguns esclarecimentos acerca dessa inverdade que, de tanto
repetida, parece ter se tornado um dado real e sincero. Antes, porém,
recordemos ser o Brasil o país do “homicídio excessivo”.
Matou-se violentamente, nos últimos tempos, em torno de 60 mil
indivíduos ao ano e somente 8% dessa estatística é apurada pela
autoridade policial. Em miúdos, existem 55 mil homicídios cujos autores
jamais serão identificados e mesmo encarcerados. Logo, como
consequência, o Brasil é também o “país da impunidade”.
O mantra do “encarceramento excessivo” significa que se prende mais
do que se deveria? Não necessariamente. Superlotação de presídio não é
estrita decorrência de uma política de “encarceramento excessivo”.
Trata-se, retoricamente, de uma falácia dedutiva de uma causa falsa,
mais conhecida como post hoc ergo propter hoc: todo antecedente é causa
do consequente.
Superlotação de presídio pode ter várias causas. Em nossa realidade, a
omissão dos governantes na expansão do sistema penitenciário tem um
peso específico bastante ponderável nessa equação, pois sabemos que
construir presídio não dá voto. Se existissem mais vagas, muitos
presídios não seriam depósitos de pessoas.
E, considerando que, por aqui, assassina-se mais ao ano do que a
última guerra civil na Síria, o número atual de vagas em presídios só
pode ser mesmo insuficiente. Não é porque uma geladeira está cheia de
bebida que há bebida demais para a festa. A geladeira pode ser um
frigobar de república estudantil e o número de convidados corresponder a
todos os moradores do condomínio.
Alguém poderia arguir que a realidade penitenciária nacional já nos
premia na quarta posição em números absolutos de população carcerária,
donde decorre, de novo, o argumento do tal encarceramento excessivo.
Aqui, novamente, incide a mesma falácia anterior, porque o Brasil, por
ter a quinta maior população do mundo, ostenta uma população carcerária
compatível com esse patamar demográfico.
No ranking que interessa – o do Institute for Criminal Policy
Research (ICPR), e não naquele dos números que, durante anos, foram
torturados pelos ideólogos do Infopen –, o Brasil aparece na 32.ª
posição, com 307 presos para cada 100 mil habitantes. É excessivo?
Seguramente, não. Curioso notar que, nesse mesmo ranking, países menos
populosos que o Brasil, como Cuba e Venezuela, estão bem à nossa frente
no quesito “encarceramento excessivo”.
No Brasil, não vivemos na cultura do encarceramento. Vivemos na
cultura da impunidade. Enquanto for assim, podemos afirmar que o Brasil
prende de menos. E, caro leitor, caso ainda discorde, sugiro que,
efetivamente, ponham os encarcerados – essas vítimas do punitivismo
estatal – para trabalhar: farão muito mais para a sociedade do que
sociólogos, militantes e professores universitários engajados, além de
políticos jacobinos e atores globais, que os querem todos bem soltos por
aí, baseados na narrativa falaciosa da cultura do encarceramento.
André Gonçalves Fernandes,
post-Ph.D., é juiz de execução criminal, professor de Filosofia e
Metodologia do Direito do CEU Law School, e pesquisador da Unicamp.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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