Índia, o motor asiático: ascensão social em massa. |
A pobreza e as disparidades persistem, mas nem tudo é sombrio no planeta, revela livro do estatístico sueco Hans Rosling:
Bombardeadas de informações a torto e a direito, as pessoas hoje em
dia têm a impressão de que sabem tudo sobre o mundo — e de que ele vai
de mal a pior. O balanço de 2019 é um amontoado de protestos
disseminados na América Latina, conflitos no Oriente Médio, avanço do
obscurantismo no planeta e relatos de desigualdade extrema, inclusive
nos países ricos. Calma, porém: o apocalipse não está na esquina, como
prova, com números, o livro Factfulness — O Hábito Libertador de Só Ter
Opiniões Baseadas em Fatos (Editora Record). Escrito pelo estatístico
sueco Hans Rosling, que morreu em 2017 vítima de um câncer no pâncreas, o
título está na lista dos mais vendidos da Europa e dos Estados Unidos. O
fundador da Microsoft, Bill Gates, comprou 3,6 milhões de cópias
digitais para distribuir nas faculdades. Para o ex-presidente dos
Estados Unidos Barack Obama, trata-se de “uma esperançosa projeção do
potencial humano de progredir”. Rosling, de fato, vai na contramão das
más notícias. Sob o prisma do que as pessoas conseguem comprar com o que
ganham, e não o da renda absoluta — essa é a novidade —, suas planilhas
mostram que seis em cada sete habitantes do planeta já desfrutam o que
ele qualifica de “padrão de vida decente”, com boa dose de conforto
cotidiano. Isso inclui filhos na escola, fornecimento de eletricidade
estável e gastos em lazer, como viagens de férias. Assim, a sociedade
como um todo está mais avançada do que se pensa. Oitenta por cento da
população mundial utiliza contraceptivos e está protegida por vacinas e
88% dispõem de água potável.
Os estudos de Rosling tiveram tal impacto que levaram o Banco Mundial
a alterar a forma como classifica os países. Indo além da conhecida
divisão entre desenvolvidos e em desenvolvimento, o órgão criou quatro
subdivisões de renda diária que redefinem níveis de classe social e
reveem o conceito de desigualdade. Há meio século, a maioria das pessoas
estava paralisada no piso da pirâmide social e muito afastada do que o
termômetro de Rosling aponta como classe média — daí a imagem do camelo e
suas duas corcovas separadas por um profundo vale com que ele
representa aqueles anos 1970. Só que a roda girou, e a escalada em massa
rumo à faixa mediana engoliu uma corcova, em um retrato de mais
bem-estar (veja o gráfico). Sim, a pobreza e os contrastes sociais
persistem, mas Rosling traz um ângulo que proporciona algum respiro: de
cinquenta anos para cá, a miséria global encolheu de 50% para 9%,
alçando muita gente a patamares em que as necessidades básicas estão bem
equacionadas.
Em sua argumentação, o estatístico sueco mostra que, entre os 7
bilhões de moradores da Terra, embora 1 bilhão ainda viva na faixa das
altas precariedades, outros 3 bilhões têm no mínimo acesso a fogão,
geladeira, eletricidade e os filhos na escola. Sobra mais uma multidão
de 3 bilhões de indivíduos que conseguem investir em lazer e em pequenos
luxos, como carro próprio — entre esses, 1 bilhão ainda vão à
universidade, frequentam restaurantes e viajam de avião. A nova
ordenação dissolve as fronteiras geográficas para reagrupar a humanidade
de acordo com o que ela acessa. Rosling se deteve sobre o cotidiano de
300 casas em cinquenta países. Foram destrinchados 130 aspectos, como
itens de higiene e pratos de comida. E a conclusão é que muito mais
gente do que se imagina galgou posições sociais em todos os cantos,
visão que se choca com a da turma liderada pelo francês Thomas Piketty,
autor do livro-referência Capital e Ideologia. Para ela, baseada no
clássico coeficiente de Gini, a desigualdade se agrava (o Brasil, onde
1% da população concentra atualmente 30% da renda, é um exemplo).
Rosling sabe disso, mas pondera: “A visão tradicional ignora a ascensão
social de 4 bilhões de pessoas, ou 60% da humanidade, nas últimas
décadas”.
Um dos motores da melhora está no avanço dos países asiáticos da
segunda metade do século XX para cá, sobretudo a Índia e a China. Em
1858, a Guerra do Ópio chinesa e uma tentativa frustrada de
independência indiana deixaram um rastro de miséria, o que só começaria a
ser revertido nos anos 50 para se acelerar nos 70 com reformas
econômicas. As estatísticas ainda apontam para um fosso regional nos
dois países, mas já há localidades ali em que o padrão de vida é tão bom
quanto na Inglaterra ou nos Estados Unidos — um morador de Xangai
acessa um sistema de saúde superior ao americano. Se as desigualdades,
que represam o mercado interno e criam instabilidade social, forem
atenuadas, em três décadas chineses e indianos terão rendimento médio
semelhante ao dos britânicos.
Mesmo a diferença de renda no Brasil é relativizada por Rosling. Um
dos gráficos mostra que os 10% mais ricos ficavam com metade da renda em
1989, mas esse porcentual caiu para 40% em 2015, o nível mais baixo em
décadas. “A maioria dos brasileiros saiu da extrema pobreza e está bem
instalada na classe média, ponto em que dá para economizar para pagar o
ensino médio.” Em resumo: “Em um dos países mais desiguais do mundo,
grande parte das pessoas já está no meio”, sustenta. É verdade que a
crise dos últimos anos fez o fosso brasileiro se agravar, mas o otimismo
de Rosling não esmorece. A tirar pela lógica que regeu a humanidade até
este momento, mesmo com solavancos ela sempre avança.
Publicado em VEJA de 4 de março de 2020, edição nº 2676
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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