Um balanço das eleições
até aqui. E por que precisamos eleger Jair Messias Bolsonaro no primeiro
turno. Eduardo Matos de Alencar, sociólogo e escritor, via Amálgama:
1. Mea culpa, ou Cego é quem não quer ver.
Entre dezenas de peças de publicidade eleitoral que ajudaram a compor o quadro da campanha mais desastrosa da história do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB),
uma me chamou a atenção mais do que as outras. Na peça, veiculada na
rádio, uma mulher reclama que sua mãe está morrendo na fila do hospital,
mas ninguém faz nada. O doutor diz que não tem leito disponível, falta
medicamento etc. Ela não aguenta mais, já reclamou para Deus e o mundo,
mas ninguém ajuda! Enquanto isso, só o que a gente vê é notícia de
roubalheira na televisão. Vai dando uma raiva, uma vontade de fazer uma
besteira… Segue-se um barulho de revolver engatilhando, e o narrador
explica, calma e seriamente, porque, quando a gente não pensa direito,
faz besteira e depois se arrepende. Ato contínuo, fala sobre a
importância na gestão da saúde, os maravilhosos hospitais de São Paulo
etc.
É improvável que o
publicitário responsável, ou o sr. Geraldo Alckmin, tenham passado uma
vez sequer por uma situação parecida durante suas vidas. Caso contrário,
saberiam que o efeito da peça acaba despertando no cidadão comum
exatamente a reação instintiva que a fictícia mulher teria de tomar para
salvar a vida da própria mãe. No Brasil, qualquer um que já tenha
ficado refém de péssimos serviços públicos sabe que, muitas vezes, a
fronteira entre a vida e a morte reside na ousadia, na falta de vergonha
e na atitude enérgica e até um tanto impulsiva contra o mal iminente.
Quem assiste bovinamente ao ente querido definhar sem a devida atenção
na maca do hospital termina amargando ressentimento no velório. E quem
se queixa, reclama, protesta, faz barulho e arruma barraco acaba não
raro conseguindo uma resposta satisfatória de funcionários ou gestores
cuja maior preocupação, muitas vezes, é se livrar dos problemas o mais
rápido possível.
Nesse aspecto, não se
pode dizer que a peça tenha sido de todo fracassada. Ela, de fato,
capta um sentimento que grassa no coração dos brasileiros. As revelações
associadas à Operação Lava Jato e a todas as movimentações do sistema
de justiça criminal que a ela se seguiram, desmoralizando,
progressivamente, as principais lideranças dos partidos políticos que
vem se alternando no governo do país desde o início da Nova República,
junto com a crise econômica e institucional que se abateu no país como
resultado da incompetência e improbidade de presidentes como Dilma
Rousseff e Michel Temer, vem deixando o brasileiro exatamente como a
mulher da peça: acuado, sufocado, indignado e pronto para uma resposta
rápida e o mais enérgica possível.
Tenho uma parcela
razoável de certeza de que esse é o sentimento por trás de grande parte
das intenções de voto em Jair Messias Bolsonaro. Certamente, ele se
associa com outros fatores, como a crescente insegurança da vida urbana e
rural, o medo da violência e da morte, a esterilidade econômica, a
falta de emprego, o sufocamento da iniciativa privada, a grande carga
tributária que reduz o poder de compra dia após dia e a ineficiência de
serviços públicos que não conseguem prover o básico. Os brasileiros,
vivemos cotidianamente sob um nível de tensão, estresse, acocho,
instabilidade e sensação de ruptura iminente que talvez nenhum povo do
mundo fosse capaz de suportar durante tanto tempo.
Parte desse cenário
se deve a causas remotas, que nada tem a ver com os últimos quatro ou
cinco anos. O nível atual anomia social ou o descolamento entre as
pessoas e as instituições tem também a ver com a incapacidade de um
arranjo institucional que tudo promete e nada dá. A Constituição de 1988,
nesse aspecto, sempre me pareceu uma bomba relógio que prevê mais
direitos do que o Estado brasileiro jamais seria capaz de dar sem
sufocar a própria dinamicidade da sociedade e, consequentemente, a fonte
do seu próprio Poder, de modo que esse destino talvez se precipitasse
mais cedo ou mais tarde. É claro que a rapacidade, a arrogância, a
alienação, a mendacidade, a hipocrisia, a concupiscência e as ideias
fora do lugar de grande parte de nossa classe política contribuiu com
sua parte.
O recente crescimento
econômico e ascensão social de parcela da população brasileira,
acompanhado de uma bolha midiática de promessas de um futuro luminoso,
parece ter exercido um efeito de aceleração no cronômetro dessa bomba
relógio. Esse cenário de privação relativa, isto é, da sensação de perda
de algo em comparação ao que se tinha ou se julgava próximo, junto com a
anomia social e o descrédito generalizado nas instituições, terminou
atirando o país num cenário claramente pré-revolucionário, que repete em
tudo o estado da questão da bibliografia especializada sobre o tema.
Alguma hora, a corda tinha que romper. E, de certa forma, rompeu. A recente greve dos caminhoneiros
revelou a uma sociedade boquiaberta o poder disruptivo que determinadas
classes podem ter, mas que não encontraram, à época, lideranças e
projetos claros, capazes de conduzir o país às mudanças necessárias,
seja em termos de um rompimento brusco do ordenamento institucional,
seja em termos de sua reacomodação em novas bases, esta última
alternativa bem mais adequada aos nossos processos de renovação de ciclo
político, que se dão mais ou menos a cada 30 anos, desde o final da
longa estabilidade do Segundo Império.
Foi nesse clima que o povo brasileiro mergulhou de cabeça no processo eleitoral. Como eu,
muita gente ainda acreditava que o establishment, ou as elites
políticas que tem governado o país até então, fossem demonstrar
capacidade de dar resposta a essa demanda represada. Esperávamos,
talvez, uma política de aggiornamento dessas mesmas elites, em face da
sua desmoralização nos últimos anos e das demandas prementes de uma
sociedade em crise.
Ninguém chegou a
formular muito bem em que medida um projeto assim deveria ser
apresentado, mas acredito que devesse contemplar uma disposição franca
de abrir pelo menos parte da caixa-preta da política nacional, cortar da
própria carne, reconhecer responsabilidades, libertar as energias
sufocadas da sociedade civil e devolver ao povo parcela das liberdades e
dos recursos que lhes tem sido tomadas dia após dia. Tudo isso, junto
com o trabalho adequado de marketing e o perfeito funcionamento das
máquinas eleitorais, prometia colocar o país de novo nos eixos, longe do
petismo e daquilo que parecia, então, a aventura de um lobo solitário,
deslocada de respaldo em instituições sólidas, mas promissora para um
futuro nem tão distante. Ou seja, a lógica do que, em sociologia, se
chama de Efeito São Matheus, ou a tendência de que recursos atraiam mais
recursos, associada à suposição da antifragilidade
de elites políticas que tinham nas mãos a capacidade, os recursos e as
tecnologias disponíveis para nos livrar de mais uma crise, foi o que me
levou, assim como a muita gente, a acreditar no seu triunfo ao fim e ao
cabo, ainda que, no meu caso, tudo isso viesse permeado por uma
desilusão profunda, sem qualquer apego a um sistema político ao qual já
havia virado as costas e sofrido as consequências por causa disso.
Pois bem. Não
aconteceu. As elites que podiam dar resposta ao problema se embolaram
numa sucessão de erros que envolveu arrogância, vaidade, ignorância,
inépcia, alienação, apego excessivo a privilégios, busca pela
sobrevivência e incapacidade de comunicação. Aquilo que se convencionou
chamar de Centrão,
uma maçaroca de partidos e caciques que se definem pela baixa
consistência ideológica, pelo fisiologismo e pelo vazio em termos de
projeto de futuro, dividiu-se em candidaturas furadas, lideradas por
homens ocos, apresentando o mesmo pacote inconsistente que os levou a
seguidas derrotas contra o petismo nas últimas quatro eleições. Geraldo
Alckmin, Henrique Meirelles, Álvaro Dias e Marina Silva disputaram a
tapinhas de luva o posto de candidato mais anódino nessa eleição. Entre
os quatro, logicamente, o candidato do PSDB talvez mereça o prêmio, pela
quantidade de recursos investidos. Jogou parado, largou parado e parado
morrerá. A fortuna favorece os audazes, diziam os romanos. Os covardes e
pusilânimes, porém, morrem mil vezes antes da própria morte.
No campo da extrema
esquerda, a disputa pelo legado do lulismo vem se intensificando a
passos largos. Pouco a pouco, Ciro Gomes e Fernando Haddad foram se
destacando como as únicas opções viáveis, principalmente após o fracasso
do primeiro em conseguir apoio da récua que terminou se incorporando à
campanha tucana. Nesse jogo, o tônus da disputa tem se intensificado
para ataques cada dia mais virulentos contra instituições como a
imprensa, o mercado financeiro, o Poder Judiciário, o Ministério
Público, a Polícia Federal, os partidos políticos que não fazem parte
desse jogo e todas as demais que possam eventualmente ser classificadas
como participantes do “golpe
jurídico-midiático-parlamentar-com-amplo-apoio-de-manifestações-de-rua”
ou o raio que o parta de nome que essa gente utiliza para classificar
todo mundo que não está ao lado deles – eu incluso.
A ligeira vantagem de
Haddad nessa disputa, devido ao apoio explícito do ex-presidente Lula e
às máquinas do petismo ainda ativas em muitos estados do Nordeste, tem
nos levado a um cenário de provável segundo turno, que pode resultar num
desastroso retorno do petismo, com todas as consequências que o
revanchismo, a incapacidade, a sanha por escapar do jugo da Justiça, a
falta de legitimidade e a ausência de apoio político podem trazer,
incluindo o prolongamento da instabilidade e, possivelmente, a
precipitação de ruptura do sistema como um todo, com todos os elementos
para um banho de sangue inédito na história política nacional.
É claro que, em toda
batalha, não se deve analisar somente os erros de quem perdeu. O inimigo
deve ter algo a ver com isso, dizia o General George Pickett, derrotado
durante a Guerra Civil Americana. Jair Messias Bolsonaro se provou um
campeão com capacidades bem além do esperado, para muita gente. O homem
é, de fato, o protótipo do político antifrágil. Contra tudo e contra
todos, há dois anos prospera e cresce na adversidade. Suas trapalhadas
se mostram grandes trunfos em uma, duas ou três jogadas adiante. Sua
impulsividade facilmente se converte em credibilidade. E até quando se
encontra irremediavelmente acuado, tem conseguido desviar a energia dos
oponentes de volta para eles com a habilidade de um mestre bêbado do
kung fu. Toda vez que tropeça, o candidato do PSL parece atingir um
ponto fraco de algum adversário, nem que seja, no mínimo (que facilmente
se transforma em máximo, em se tratando de persuasão), por despertar a
simpatia do público, que logo se converte em torcida diante da
semelhança entre as fraquezas do lutador e as suas próprias.
Afinal, o que foi a
negociação desastrosa para atrair parte do Centrão, possivelmente
motivada pela dificuldade de fazer concessões? O aparente fiasco logo se
transformou num reforço da imagem de incorruptível, num componente a
mais no currículo a lhe fiar a promessa de não governar na base do
toma-lá-dá-cá. E as declarações impulsivas, que, quando não terminaram
atraindo a atenção do público por confirmar parcela de seus preconceitos
e/ou visões de mundo, foram habilmente direcionadas para polêmicas como
kit gay, redução da maioridade penal etc.? E o reconhecimento das
próprias limitações técnicas, num pleito infestado de homens ocos,
sofistas bem treinados, mas, todo mundo bem sabe, incapazes de se
debruçar sobre problemas reais com a habilidade de especialistas de
verdade? Até quando um jornalista habilidoso tentou lhe colocar na saia
justa com uma pergunta mais técnica durante um dos debates em que
participou, a questão foi tão difícil que os telespectadores
simplesmente não entenderam o que se passava ali. Em inúmeras situações
em que muitos seriam partidos ao meio, Bolsonaro se amoldou, desviou,
reverteu o golpe, ou simplesmente aguentou o tranco e prosperou.
De certa forma,
talvez a sociedade brasileira tenha sido vítima de um efeito reverso,
algo que a sociologia política nunca tratou muito bem, que diz respeito
ao poder que o fraco alcança no exato momento em que se desnuda de todas
as ilusões de força e se assume enquanto tal, exposto, nu, humano. São
Paulo expressa essa realidade ambígua na Segunda Epístola aos Coríntios,
quando diz sentir prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades,
nas perseguições, nas angústias por causa de Cristo, “porque quando
estou fraco, então sou forte” (12:10). Essa assunção de fraqueza, que
rebaixa o homem ao nível dos seus iguais, permitindo um acesso mais
imediato aos seus corações, um verdadeiro reconhecimento, parece ser
capaz de anular o coeficiente de determinismo que orientava o raciocínio
de tanta gente, como uma propriedade ambígua do Poder, que se manifesta
principalmente na civilização Ocidental desde, pelo menos, o advento do
cristianismo. É o que eu, pelos poderes imbuídos em mim pelo diploma,
batizo de Efeito São Paulo, e espero tratar mais do tema em publicações
posteriores[1].
Outros fatores,
obviamente, também se apresentaram para que essa consolidação na
liderança se fizesse possível. O programa de governo de Jair Messias
Bolsonaro apresentou respostas para problemas reais que não foram objeto
de atenção das elites políticas nacionais, algumas concretas, outras
meramente simbólicas e muitas fruto do simples improviso. O afluxo de
liberalismo econômico na sua campanha, materializado na presença do
brilhante Paulo Guedes, mas já presente num processo de aproximações
sucessivas nos últimos cinco anos, pelo menos, foi celebrada pelo
mercado em bem mais de um aspecto, ainda que perdurasse a desconfiança
sobre sua viabilidade e credibilidade, dado o passado de inclinação
estatizante do candidato. A ênfase no discurso de enfrentamento da
criminalidade, que terminou incorporando, junto com a ênfase no direito à
posse de arma e na repressão no estilo mano dura, propostas como
investimento em inteligência e investigação policial, veio de encontro
direto aos anseios de um povo vítima cotidiana da barbárie na democracia
mais violenta do mundo. Até mesmo projetos pouco claros ou mesmo
apelativos, como a militarização das escolas ou o combate ao
doutrinamento ideológico, encontraram ouvidos atentos para jovens e pais
de família que vivem o cotidiano de violência, desordem, desmando e
ineficiência da educação brasileira.
Em grande parte, esse
pacote, junto com a própria figura do Bolsonaro, parece dar resposta a
demandas represadas no seio da sociedade civil, muitas das quais com
reflexo direto na composição do Legislativo, cuja dissociação com o
Executivo, inclusive, respondeu por parte do nosso atual debacle
institucional. Para se ter uma ideia disso, é possível pensar, por
exemplo, no tamanho de três, dos quatro maiores lobbies da legislatura
atual na Câmara dos Deputados, com 119 representantes compondo a bancada
do Boi, 85 a da Bíblia e 35, da Bala. Excluindo os que se afiguram como
representantes de mais de um dos segmentos, isso dá um total aproximado
de 212 deputados, pelo menos segundo levantamento do Estadão.
Esse blocão, junto com a necessidade de sobrevivência política, dados
os riscos de dissociação em relação ao próprio eleitorado, possivelmente
ajuda a explicar as traições no Centrão,
que levaram campeões de voto para o lado do candidato do PSL, um
cenário já considerado por especialistas como Filipe G. Martins num
debate que tivemos no início do ano. As máquinas enguiçaram porque sua
direção era outra, bem mais importante que os recursos imediatos do
Fundo Partidário.
É claro que ninguém
faz nada sozinho. Política é, também, quem pede por você. Toda uma nova
geração de brokers, isto é, intermediários que atuam para levar
informação de um canto a outro de um sistema, demonstraram seu vigor.
Intelectuais e/ou influenciadores digitais como Olavo de Carvalho,
Filipe G. Martins, Bene Barbosa, Flavio Morgenstern, Nando Moura, Allan
dos Santos e outros mais ou menos famosos demonstraram capacidade de se
comunicar com um número bem maior de pessoas do que as máquinas
partidárias jamais o fizeram. No campo das micro relações, os grupos de
Whatsapp se revelaram como canais para atuação de brokers no nível das
redes de relacionamento interpessoal que certamente apagaram a
importância das estruturas tradicionais para a mobilização de carreatas,
passeatas, adesivaços ou simples convencimento dos eleitores, incluindo
uma série de atores que trabalharam na surdina, na produção de milhares
de vídeos, memes e outros materiais de campanha, que infestaram os
celulares dos brasileiros, muitos dos quais produzidos como resposta
praticamente instantânea ao marketing eleitoral oficial, compensando,
muitas vezes, pela quantidade, a baixa qualidade técnica de sua
produção. Nesse jogo, a relação direta que o próprio Bolsonaro mantinha
com os seguidores foi certamente um componente forte para o seu
predomínio nas redes sociais, mas não o único. Esse enorme campo de
força foi consolidado pelo trabalho conjunto e pela imagem de muita
gente, ao longo da última década, mas com especial intensidade após
2013.
Numa época em que os
canais abertos de televisão se transformaram em máquinas de propaganda
ideológica, jornalismo enviesado, péssima dramaturgia e franca alienação
em relação à visão de mundo de seus telespectadores, com a internet
operando como um instrumento eficiente para furar a reserva de mercado
da concessão estatal, essa mistura entre antigas e novas estruturas de
mediação exerceu um efeito realmente devastador, encontrando no pleito
presidencial um canal para sua manifestação que não se refletiu da mesma
forma no âmbito Executivo Estadual ou no Legislativo. Várias lições
resultaram daí para quem quer fazer política no futuro, entre elas, a de
que não se pode começar tarde e a de que, com consistência,
determinação, ação prolongada no tempo e força da personalidade, é
possível quebrar até mesmo estruturas de poder há muito estabelecidas.
Ou seja, se Bolsonaro teve sucesso nessa empreitada para um país
inteiro, muita gente que se diz da nova política, mas só se faz presente
às vésperas das eleições precisa mudar sua forma de atuação, se quiser
ter algum sucesso no futuro.
2. “Sinais! Fortes sinais!”, ou O que restou para nós
É claro que esse
cenário foi marcado pelo imponderável. Não só pela inabilidade de quem
parecia ter a faca e o queijo na mão, que preferiu sentar no queijo e
enfiar a faca vocês sabem onde. O atentado contra o candidato do PSL
pegou absolutamente todo mundo de surpresa. Durante vários dias, a cena
de violência extrema foi martelada na cabeça de todos nós. E, ao final
desse processo, não eram só as tripas do líder nas pesquisas que
restaram perfuradas, mas também a cama que estava sendo armada pela
publicidade adversária, ou o teto que logo se converteu em piso, a
partir do qual o candidato, levado também pela ação de uma militância
difusa, mas entusiasmada, saltou para um voo que, até o presente
momento, não encontrou qualquer barreira em sua trajetória.
Todo esse conjunto
colocou o país diante de um cenário que tem despertado cada vez mais
apreensão. A possibilidade de que se consolide um segundo turno entre
Jair Bolsonaro e Fernando Haddad é ruim em bem mais de um sentido que
pode conceber a imaginação humana nesse exato momento. Eu posso resumir
rapidamente os riscos envolvidos numa eventual vitória do PT nesse
pleito, com todo o revanchismo e disposição para o ataque contra as
instituições acumulado durante os últimos anos, que se faz inevitável
diante da possibilidade de condenação judicial de grande parte de suas
lideranças envolvida em escândalos de corrupção. Todo mundo sabe o destino que aguarda o sr. Sergio Moro,
o sr. Marcelo Bretas, bem como os procuradores, delegados e policiais
envolvidos na luta heroica da Lava Jato, com todos os seus acertos e
tropeços, no caso que esse cenário se materialize de fato.
É possível também imaginar o que será da liberdade de imprensa do país, dado as declarações de intenção do próprio PT em documentos oficiais
e nos discursos das lideranças do partido. O passado acumulado de
esquemas de corrupção para garantir governabilidade também é um forte
componente a se somar às previsões do que deve acontecer para que um
candidato fraco, de um partido com minoria parlamentar, consiga efetivar
o tão propalado acordão “com Supremo, com tudo” para “estancar a
sangria”.
Não é difícil supor,
no âmbito das relações cotidianas, da ocupação do aparato do Estado, das
possibilidades de acesso a incentivos financeiros e até na liberdade
mesma da internet o que vai significar viver sob o jugo de quem vem
acusando todo e qualquer opositor de golpista desde o impeachment da
ex-presidente Dilma Rousseff. Destinos que se ligaram aos nossos mais
recentemente, como os dos nossos irmãos venezuelanos, também estarão
definitivamente selados neste cenário já negro demais, por si só, para
que eu precise carregar nas suas cores a fim de provocar a imaginação de
quem me lê.
Mas eu prefiro mesmo é
ficar na previsão mais próxima, do que pode significar, para esse país,
um segundo turno como esse. A tendência de alinhamento de parte do
Centrão e do restante da esquerda com o candidato petista, já anunciada por caciques como FHC,
é uma consequência óbvia da busca por sobrevivência, mas, em vez de
apaziguar os ânimos, ela deve precipitar o país numa convulsão social
sem precedentes. É fácil prever qual a imagem que cada lado evocará
sobre o outro nesse jogo. De um lado, o discurso do povo contra o
sistema, da polícia contra os bandidos, do herói vítima de atentado
contra o criminoso presidiário. Do outro, a narrativa dos campeões da
democracia contra o golpe, da Nova República contra a Ditadura, da
liberdade contra ameaça fascista, dos pobres, negros, mulheres e LGBT
contra o preconceito, o racismo, a misoginia e a ameaça de extermínio.
Tudo isso com tempo
igual de televisão, marqueteiros à disposição, redes sociais na sua
melhor forma, militância entusiasmada e um nível de tensão institucional
nunca antes experimentado nos últimos 30 anos. Isso para um processo
eleitoral que já teve um candidato vítima de atentado, o qual, levado
pela própria convicção, pelas circunstâncias em que se encontra ou, de
novo, pela capacidade de reverter fraqueza em força, aproveitou para
jogar no centro da arena dúvidas legítimas sobre a confiabilidade de um
processo eleitoral que não permite auditoria externa, já provado como
passível de fraude por especialistas capacitados, em defesa do qual
acorreram, de maneira suspeita, não só todos os políticos que estarão do
outro lado da disputa, como também decisões absolutamente controversas
da Justiça, que impossibilitaram a implementação de processos de votação
perfeitamente auditáveis, utilizados em vários países do mundo,
aprovados por maioria parlamentar.
“Sangue” e
“violência” são as palavras que me vem em mente para descrever esse
cenário mais imediato. “Ruptura”, “desordem”, “caos” e outras menos
agradáveis se apresentam quando se trata de pensar nos meses que se
seguirão ao final do pleito, principalmente em caso de vitória petista.
Quem acompanhou meu raciocínio até o presente momento deve estar
pensando na mesma coisa agora. Eu sei que a alternativa vai parecer um
remédio amargo demais para muita gente. Porém, não é difícil perceber
que a melhor probabilidade que nos resta, a julgar pelas tendências das
últimas pesquisas eleitorais, é uma só. A única maneira de por um fim
nessa aceleração vertiginosa do tempo, nessa precipitação da História
sobre nossas cabeças, é eleger Jair Messias Bolsonaro para a Presidência
da República no primeiro turno.
Já é hora de
abandonar as ilusões perdidas. Não haverá fato novo a mudar esse
cenário. A bala de prata estourou no revólver do caçador. Nem Geraldo
Alckmin, nem Henrique Meirelles, nem Marina Silva têm qualquer chance de
conquistar nem mesmo a segunda posição. O voto útil já faz sentir seu
peso sobre os eleitores e o efeito manada, sempre presente em parcela do
eleitorado que “não quer perder o voto” já apontou sua direção. Eu sei
que a posição parece há muitos de vocês execrável. Eu entendo os
motivos, e faço coro a alguns dos argumentos que levam à rejeição do
candidato do PSL, mesmo da parte de pessoas que igualmente nutrem horror
pelo petismo.
Bolsonaro nunca foi o
candidato dos meus sonhos, nem mesmo da minha preferência. Durante
meses, deixei de lado qualquer declaração de intenção de voto, porque
iniciei o ano conformado com a ideia de dar um voto silencioso e
envergonhado para o candidato do PSDB, que parecia então o mais apto a
fazer algumas concessões e compor a aliança que descrevi no início deste
artigo. Obviamente, a minha crítica ao sistema político não continha
nada de elogiosa. O desprezo que nutro por ele é tamanho que fui capaz
de queimar todos os navios que ainda me sobravam no porto com um ensaio
que me rendeu, até agora, alguma fama, mas uma quantidade ainda não
devidamente mensurada de desafetos e portas fechadas. Ainda assim,
acreditava que Bolsonaro poderia ser uma boa alternativa para a direita
brasileira, após um longo processo de institucionalização. A coisa toda
simplesmente me parecia uma aventura ingênua demais para este ano, ainda
que bem-intencionada, sob inúmeros aspectos.
O PSDB, entretanto,
pode se dar ao luxo de haver convertido ao menos um voto: o meu. Mas não
no sentido que ainda alega ser possível o sr. Geraldo Alckmin. Desde a
crise dos caminhoneiros que a insatisfação com a elite política e sua
incapacidade de adaptação me parece ter chegado ao ponto de saturação,
um sentimento que só foi confirmado na apresentação do programa de
governo tucano, ainda que, até o momento da facada, ainda acreditasse na
possibilidade de alavancagem. Àquela altura, minhas inclinações
oscilavam entre um voto de convicção em João Amoêdo, estimulado em
grande parte pelo que julgava como trapalhadas do candidato do PSL, ou
uma adesão explícita ao seu nome, já que Paulo Guedes e diversos pontos
do programa me agradavam francamente. Dois litros de sangue alheio
derramado foram mais do que o suficiente para que meu cérebro vagaroso e
minha personalidade de São Tomé se convertesse ao óbvio: a única
solução para esse impasse que nos encontramos atualmente é uma vitória
de lavada do 17, no dia 7 de outubro.
3. A convicção no nada contra a utilidade razoável, ou A importância do senso de proporções.
Eu tenho fé demais na
boa vontade humana para saber que qualquer sujeito que não um eleitor
convicto de esquerda possa estar inclinado a me dar razão a essa altura.
Perdoem-me desde já se pareço ofensivo ao dizer que pessoas como
Geraldo Alckmin, Henrique Meirelles, Álvaro Dias ou Marina Silva não me
pareçam dignas de um voto de convicção nesse momento. Todos vocês sabem
que parcela do apoio que deviam a esses candidatos se esteava em
cálculos de alguma forma pragmáticos, porque algum nível de pragmatismo e
de concessão com algumas mazelas da política nacional todos eles
apresentavam, em maior ou menor grau. É por isso mesmo que não há mais
sentido em pensar em convicção para se apegar a essas barcas furadas.
Até mesmo o purismo mais enfático dos eleitores do Novo deveria se
render, minimamente, a uma ética de responsabilidade nesse exato
momento. Todos vocês sabem que as possibilidades contidas nos cenários
mais ou menos imediatos que desenhei acima levam ao fim das próprias
condições de possibilidade de qualquer processo de renovação da política
nacional.
Goethe dizia que
preferia mil vezes a injustiça à desordem. A afirmação, ainda que
controversa, é uma paráfrase ao apelo de São Paulo para que se tenha
obediência aos governantes, mesmo que muitas vezes sejam injustos,
contanto que não atentem frontalmente contra a Lei Divina. Eu sei que
muitos dos que me leem não são católicos, mas pensem nisso: a desordem é
pior do que uma injustiça, porque ela é a injustiça contra todos nós,
indiscriminadamente e fora de qualquer proporcionalidade. Portanto,
peçam desculpas ao vosso líder, fortaleçam o partido e os ideais de
renovação no Parlamento e no Executivo Estadual, e vamos juntos evitar o
mal maior que se pode conceber nesse exato momento.
É claro que muitos
podem levantar uma suposta inevitabilidade da instabilidade
institucional e da ruptura num eventual governo Bolsonaro. Eu acho que a
pequena análise que fiz sobre represamento de demandas e o deslocamento
do Legislativo em relação ao Executivo aponta ao menos para um indício
de que isso não seja uma previsão de todo certa. Nesse momento, dadas as
circunstâncias, Jair Messias Bolsonaro representa, exatamente, a única
possibilidade de reacomodação do nosso sistema político à sociedade
brasileira, produzindo um novo ciclo de mudanças que expresse, de alguma
forma, parcela daquilo que ficou de fora no anterior, assim como
aconteceu antes, na história do país.
As traições que se
acumulam no Centrão, progressivamente, junto com o apoio que ele vem
alcançando em amplos setores da população, incluindo lideranças
políticas tradicionais, são forte indício disso. Lembrem-se que essa foi
a regra durante todo o século XX, incluindo a assunção do protagonismo
de figuras até então inesperadas, de maneira mais ou menos democrática, a
depender das circunstâncias. E não finjam ignorar o que significa, em
termos de possibilidade de apoio político para as reformas prometidas (e
necessárias), uma vitória em primeiro turno. Ela é a maior expressão de
consenso que a sociedade brasileira necessita, nesse exato momento,
para sair dessa crise, visto que as possibilidades que nos restaram nos
encaminham, todas elas, para o desastre.
Façam isso nem que
seja para compor a oposição no primeiro dia de governo. Como grande
parte dos que hoje ainda não tiveram a coragem de mudar seu voto, também
não estou disposto a ceder em alguns pontos ao capitão, caso este se
coloque contra os compromissos estabelecidos até aqui. Em outros
aspectos, permaneço desde já em indisputável oposição, sem a menor
condição de declarar apoio para algumas das iniciativas prometidas
durante a campanha. Estou de acordo com muitos críticos sobre a ausência
de fortes indícios de gênio político na sua personalidade e tampouco
vejo nele o conservador com o tipo de lastro que compõem o perfil da
minha preferência em termos de política. Em inúmeras situações,
provou-se impulsivo, com falta de tato e mesmo capaz de “caneladas”,
para usar de uma expressão recente sua, que devem ter ofendido muita
gente.
Contudo, não posso
aceitar a rendição a essa atmosfera moral na qual a simples enunciação
de sentimentos virtuosos e de aceitação incondicional da diferença se
confunde com a virtude em si mesma, que nos força a aceitar a falta de
escrúpulos dos piores canalhas, desde que eles se expressem nas normas
vigentes de etiqueta, com cuidado para não ferir as susceptibilidades de
ninguém. Posso suportar o homem grosseiro e sem tato, mas odeio o
ladrão com todo o meu coração, porque ele nos rouba o tempo. É tempo,
gasto sob a forma de trabalho do qual não se pode usufruir os frutos,
que escoa de nossas vidas toda vez que se arranjam esquemas milionários
de corrupção. São as horas, os meses, os dias e os anos que se somaram
longe da família, dos livros, do amor, do conhecimento, dos cuidados
para com a saúde e da realização de vocações.
A irresponsabilidade e
rapacidade das elites políticas até aqui submeteram milhares de
brasileiros à escravidão durante grande parte de sua vida, sem a
possibilidade de usufruir do pão que ganharam com o suor de seus rostos.
E todos vocês sabem que o problema não se restringe a isso, porque os
ladrões das últimas décadas nos roubaram ou demonstraram franca
disposição de nos roubar também a possibilidade da competição justa, de
isonomia no acesso a cargos e serviços, da livre expressão da nossa
opinião na forma que bem entendermos e até de educar nossos filhos
segundo nossas convicções mais profundas.
Bolsonaro tem se
mostrado minimamente capaz de lidar com intransigência em relação aos
conchavos e grandes esquemas que nos levaram à ruína, além de não vir
aliado a um aparato de uma estrutura partidária com vocação totalitária,
o que, por si só, já deveria colocar no seu devido lugar qualquer
ressalva quanto ao eventual comportamento de alguns seguidores mais
aguerridos e menos educados. Em alguns momentos, o homem parece mesmo se
inflar com essa incapacidade de se adequar ao ambiente, ao ponto de
despertar descrédito em observadores mais céticos. Porém, às vezes é
exatamente de algo assim que precisamos. Na falta de um navio, no meio
da tormenta, uma boia que não afunde sob os impactos do mar revolto é
exatamente aquilo que necessitamos para nos salvar de um afogamento.
Assim como tantos
brasileiros, a minha existência tem se passado até aqui como a sombra de
uma imagem pálida do que poderia ter sido. Sou o rebento de uma família
progressivamente empobrecida nas últimas quatro gerações, cujo acaso, a
irresponsabilidade e o processo histórico levaram ao estado de
mediocridade e entorpecimento que parece ser o de quase todo esse país
há tantas décadas. As lembranças desse passado vêm se decompondo na
fumaça de incêndios maiores e menores, aqui e ali.
Um registro, uma
memória familiar, porém, ainda guardo num recanto precioso do coração,
para me lembrar das responsabilidades que um dia tivemos e das respostas
que temos de dar nas situações extremas. Ela se refere ao dia em que
meu bisavô, o então sargento José de Alencar de Carvalho Pires, decidiu
enfrentar a invasão do bando de facínoras liderados por Virgulino
Ferreira da Silva, o Lampião, ao município de Belmonte (PE). Contando
com um efetivo de oito homens para resistir ao assalto de dezenas de
cangaceiros, o capitão José pegou das armas de que dispunha na delegacia
da cidade e distribui-a para um grupo de bravos locais, para dar
combate ao bando. No meio da refrega, foi atingido na mão por um tiro,
que levou à explosão do seu revólver, seguido de um desmaio posterior,
por excesso de perda de sangue. Os cangaceiros, ainda que tivessem
alcançado parcela dos objetivos que os haviam levado até ali, tiveram na
batalha um de seus mais ranhetos episódios de resistência popular.
Feito ainda mais notável se repetiu em Mossoró (MA), cinco anos depois,
quando o então prefeito Rodolfo Fernandes retirou mulheres, velhos e
crianças da cidade, para que a população, armada até os dentes, pudesse
expulsar na bala os facínoras liderados por Lampião. Esses casos quase
irrelevantes para a historiografia acadêmica, que compõem parcela da
épica nordestina, ensinaram-me que até homens sem recursos e com poucas
capacidades podem liderar um povo contra a desordem e a barbárie quando
aqueles que se propõem ao bom combate não fogem de suas
responsabilidades.
A resposta que temos
de dar no dia 07 de Outubro é da mesma natureza que a que aquelas
pessoas deram, naquelas pequeninas cidades sertanejas. Quando não há
mais tempo para nada, o que importa é cerrar fileiras contra os
agressores, sobreviver e cobrar os compromissos estabelecidos até aqui
com a Ordem, a Justiça e a Liberdade. Se vocês não veem nada, se os
crimes cometidos pelas forças que nos ameaçam nesse exato momento lhes
são desconhecidos, deixem o primeiro turno passar em branco e ajudem a
precipitar o país na desordem e na violência. Porém, se conseguem ver da
mesma forma que eu vejo, se sentem a ameaça como eu sinto e se são
capazes de sopesar custos e riscos na mesma proporção, eu peço que votem
em Jair Messias Bolsonaro no dia 07 de outubro.
Então, vamos dar às
aves de rapina e aos abutres sedentos de sangue uma eleição que eles
nunca, jamais esquecerão. Os que pecaram contra o país no passado
recente receberão a sua resposta, assim como os que se dispuseram a
lutar antes de nós. E, se o capitão trair aqueles que lhe emprestaram um
voto de confiança, mostrando-se um vilão ainda mais mendaz do que os
que expulsamos, usaremos as armas que ele mesmo prometeu nos autorizar a
ter para mostrar quem é que manda nesta porra!
______
NOTA
[1]
O Efeito São Paulo tem pai e mãe. Portanto, só reconheço uma pessoa que
pode disputar a precedência na descoberta, ainda que de maneira não tão
elaborada, que é o Paulo Lins,
um sujeito misterioso que conheci pelo Facebook, sempre pronto a
comentários absolutamente brilhantes nas postagens que faço na rede
social. Foi ele que, num dia desses, soltou a comparação entre os
apóstolos, um servindo de contraponto ao outro etc. Rendo-lhe, portanto
as devidas homenagens. E deixo o aviso sobre processos judiciais a
qualquer um dos calhordas da beautiful people que por vezes leem minhas
coisas por aí, para depois falar como se deles fossem: acusações de
plágio muitas vezes rendem fama e dinheiro. Tomem cuidado. Nunca é bom
acossar um homem sem recursos.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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