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Tal como Atenas e Esparta na Antiguidade, a China e os EUA de hoje estão condenados a desentenderem-se. Esperemos que esse desentendimento seja gerido da forma mais contida de uma Segunda Guerra Fria. Bruno Cardoso Reis para o Observador:
Aprende-se
muito com a história. Até vou mais longe, só com a história podemos
aprender. O futuro ainda não existe, portanto não nos pode ensinar nada.
O presente é um instante, efémero, que logo se transforma em passado,
sobretudo se for digno de memória. Portanto, só com o passado, próximo
ou distante, podemos aprender. Como o estadista veterano Otto von
Bismarck terá dito: só os ingénuos se orgulham de aprender apenas com os
seus erros, os sábios procuram aprender, o mais possível, com os erros
dos outros. Ou seja, devemos olhar para a nossa história coletiva e não
apenas para a nossa memória individual. Se não acreditasse nisto não
seria historiador.
Sei
que há historiadores que resistem à ideia de que possa haver qualquer
tipo de lições da história. Percebo o receio de que a procura de lições
acabe em abusos interesseiros da história. Mas a solução é combater
abusos. Não é condenar algo que é natural e lógico, retirar lições do
que se passou para procurar fazer melhor no futuro. Claro que isso passa
por rejeitar a ideia de lições simplistas do passado, prontas a usar no
presente com sucesso garantido. Além disso, um bom historiador está
ciente do peso de certas heranças, mas também da importância de grandes
mudanças, e rejeitará analogias abusivas. Nenhum período ou evento ou
protagonista é exatamente igual a outro. Isso não significa que não se
possa retirar ensinamentos úteis da análise do passado histórico, desde
logo no sentido de combater um presentismo que não passa de ignorância
afoita. Quanto vezes ouvimos dizer, sem uma base sólida, que isto ou
aquilo é sem precedentes e completamente novo ou que sempre aconteceu?
Peguemos em dois eventos centrais na política global atual para ilustrar
este ponto: a invasão russa da Ucrânia e a ascensão global da China.
A invasão russa da Ucrânia
São
muitos os abusos da história utilizados para justificar a invasão russa
da Ucrânia. Comecemos pelo mais evidente. O de que a Ucrânia nunca
existiu, sempre fez parte da Rússia. É verdade que a Ucrânia não existiu
como estado independente até 1991, quando 88% dos ucranianos, inclusive
no Donbas (83%) e na Crimeia (54%), votou livremente pela sua
independência. Mas a maior parte dos 193 Estados soberanos atualmente
reconhecidos têm menos de 100 anos, muito poucos têm mais de 200 anos e
praticamente nenhum manteve as suas fronteiras ao longo de todo esse
período. A ONU foi criada em 1945 com apenas 51 Estados. Mais de 140 dos
Estados atuais são pós-imperiais. O século XX foi um vasto cemitério de
impérios multiétnicos. Desse ponto de vista a Ucrânia não é excecional.
O império russo-soviético é que foi excecionalmente durável.
O
que a história nos mostra, isso sim, repetidamente, é que as guerras
assimétricas não terminam necessariamente com a vitória do lado mais
poderoso. A Rússia começou esta guerra com uma vantagem de 10 para 1 em
tanques, aviões ou navios de guerra face à Ucrânia. Mas desde as legiões
do Império Romano na floresta de Teotoburgo no século I, até aos
norte-americanos no Vietname e aos soviéticos no Afeganistão no século
XX não têm faltado casos de grandes potências forçadas a retirar por
movimentos de resistência armada que tiram o máximo partido de táticas
irregulares, de não terem para onde recuar e da ajuda de aliados
externos.
A ascensão da China
O
Partido Comunista Chinês ao fim de cem anos está cada vez menos
comunista e cada vez mais nacionalista. A sua legitimação passa por
convencer a maioria da população de que é graças ao regime comunista que
o país pode voltar a dar verdadeiro sentido ao seu nome: ser novamente
um império central no Mundo. Parte dessa narrativa legitimadora passa
pela insistência na necessidade de vingar um século de humilhações e
tratados desiguais, da Primeira Guerra do Ópio (1839-42) até à vitória
dos comunistas na guerra civil e a reunificação quase completa da China
em 1949. Essa versão moralista da histórica ignora, desde logo, que
durante grande parte da sua existência sucessivos impérios chineses
fizeram questão de impor, por princípio, relações desiguais a todos os
Estados vizinhos menos poderosos.
Também
se deduz desta história que é inevitável que Pequim choque com as
potências ocidentais e o Japão por elas serem as grandes responsáveis
por essa humilhação, apossando-se de território chinês. Ora, essa
história é mais complicada do que isso. Não se trata de negar as
injustiças e violências do imperialismo ocidental. É inegável que fazer
uma guerra pelas drogas, pelo direito de vender ópio aos chineses, foi
uma página vergonhosa na história britânica. Mas cabe lembrar que, a par
do Japão, o atual grande parceiro estratégico da China comunista – a
Rússia – foi o Estado que retirou mais ganhos territoriais da fraqueza
chinesa. Todo o Extremo Oriente russo, inclusive o território onde hoje
está Vladivostoque, só foi anexado pela Rússia em 1858. A União
Soviética de Estaline tentou manter alguns privilégios imperiais na
China, e só os cedeu definitivamente depois de estar convencida de que
teria um aliado fiel no regime chinês. Os EUA foram a única grande
potência que sempre defendeu a política de uma só China e mais se
opuseram ao seu desmembramento. Em suma, é abusivo pensar que a atual
política externa da China é o resultado inevitável da história passada,
ela é o resultado de opções e conveniências políticas recentes.
Qual
é a lição histórica mais relevante para analisar a ascensão chinesa? Há
um padrão histórico recorrente: o surgimento duma grande potência gera
tensões e conflitos, em particular com a grande potência
tradicionalmente dominante. O padrão foi identificado pela primeira vez
por um famoso político e historiador ateniense do século V a.C., por
isso é muitas vezes designado de armadilha de Tucídides. Tal como Atenas
e Esparta na Antiguidade, a China e os EUA de hoje estão condenados a
desentenderem-se. Esperemos que a grande mudança que teve lugar desde
1945 – o surgimento de armas nucleares – leve a que esse desentendimento
seja gerido da forma mais contida de uma Segunda Guerra Fria e não da
forma mais violenta e potencialmente catastrófica de uma Terceira Guerra
Mundial.
Postado há 6 days ago por Orlando Tambosi
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