MEDIÇÃO DE TERRA

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quinta-feira, 16 de março de 2023

Histórias da Ucrânia à China: abusos e lições.

 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI


Tal como Atenas e Esparta na Antiguidade, a China e os EUA de hoje estão condenados a desentenderem-se. Esperemos que esse desentendimento seja gerido da forma mais contida de uma Segunda Guerra Fria. Bruno Cardoso Reis para o Observador:


Aprende-se muito com a história. Até vou mais longe, só com a história podemos aprender. O futuro ainda não existe, portanto não nos pode ensinar nada. O presente é um instante, efémero, que logo se transforma em passado, sobretudo se for digno de memória. Portanto, só com o passado, próximo ou distante, podemos aprender. Como o estadista veterano Otto von Bismarck terá dito: só os ingénuos se orgulham de aprender apenas com os seus erros, os sábios procuram aprender, o mais possível, com os erros dos outros. Ou seja, devemos olhar para a nossa história coletiva e não apenas para a nossa memória individual. Se não acreditasse nisto não seria historiador.

Sei que há historiadores que resistem à ideia de que possa haver qualquer tipo de lições da história. Percebo o receio de que a procura de lições acabe em abusos interesseiros da história. Mas a solução é combater abusos. Não é condenar algo que é natural e lógico, retirar lições do que se passou para procurar fazer melhor no futuro. Claro que isso passa por rejeitar a ideia de lições simplistas do passado, prontas a usar no presente com sucesso garantido. Além disso, um bom historiador está ciente do peso de certas heranças, mas também da importância de grandes mudanças, e rejeitará analogias abusivas. Nenhum período ou evento ou protagonista é exatamente igual a outro. Isso não significa que não se possa retirar ensinamentos úteis da análise do passado histórico, desde logo no sentido de combater um presentismo que não passa de ignorância afoita. Quanto vezes ouvimos dizer, sem uma base sólida, que isto ou aquilo é sem precedentes e completamente novo ou que sempre aconteceu? Peguemos em dois eventos centrais na política global atual para ilustrar este ponto: a invasão russa da Ucrânia e a ascensão global da China.

A invasão russa da Ucrânia

São muitos os abusos da história utilizados para justificar a invasão russa da Ucrânia. Comecemos pelo mais evidente. O de que a Ucrânia nunca existiu, sempre fez parte da Rússia. É verdade que a Ucrânia não existiu como estado independente até 1991, quando 88% dos ucranianos, inclusive no Donbas (83%) e na Crimeia (54%), votou livremente pela sua independência. Mas a maior parte dos 193 Estados soberanos atualmente reconhecidos têm menos de 100 anos, muito poucos têm mais de 200 anos e praticamente nenhum manteve as suas fronteiras ao longo de todo esse período. A ONU foi criada em 1945 com apenas 51 Estados. Mais de 140 dos Estados atuais são pós-imperiais. O século XX foi um vasto cemitério de impérios multiétnicos. Desse ponto de vista a Ucrânia não é excecional. O império russo-soviético é que foi excecionalmente durável.

O que a história nos mostra, isso sim, repetidamente, é que as guerras assimétricas não terminam necessariamente com a vitória do lado mais poderoso. A Rússia começou esta guerra com uma vantagem de 10 para 1 em tanques, aviões ou navios de guerra face à Ucrânia. Mas desde as legiões do Império Romano na floresta de Teotoburgo no século I, até aos norte-americanos no Vietname e aos soviéticos no Afeganistão no século XX não têm faltado casos de grandes potências forçadas a retirar por movimentos de resistência armada que tiram o máximo partido de táticas irregulares, de não terem para onde recuar e da ajuda de aliados externos.

A ascensão da China

O Partido Comunista Chinês ao fim de cem anos está cada vez menos comunista e cada vez mais nacionalista. A sua legitimação passa por convencer a maioria da população de que é graças ao regime comunista que o país pode voltar a dar verdadeiro sentido ao seu nome: ser novamente um império central no Mundo. Parte dessa narrativa legitimadora passa pela insistência na necessidade de vingar um século de humilhações e tratados desiguais, da Primeira Guerra do Ópio (1839-42) até à vitória dos comunistas na guerra civil e a reunificação quase completa da China em 1949. Essa versão moralista da histórica ignora, desde logo, que durante grande parte da sua existência sucessivos impérios chineses fizeram questão de impor, por princípio, relações desiguais a todos os Estados vizinhos menos poderosos.

Também se deduz desta história que é inevitável que Pequim choque com as potências ocidentais e o Japão por elas serem as grandes responsáveis por essa humilhação, apossando-se de território chinês. Ora, essa história é mais complicada do que isso. Não se trata de negar as injustiças e violências do imperialismo ocidental. É inegável que fazer uma guerra pelas drogas, pelo direito de vender ópio aos chineses, foi uma página vergonhosa na história britânica. Mas cabe lembrar que, a par do Japão, o atual grande parceiro estratégico da China comunista – a Rússia – foi o Estado que retirou mais ganhos territoriais da fraqueza chinesa. Todo o Extremo Oriente russo, inclusive o território onde hoje está Vladivostoque, só foi anexado pela Rússia em 1858. A União Soviética de Estaline tentou manter alguns privilégios imperiais na China, e só os cedeu definitivamente depois de estar convencida de que teria um aliado fiel no regime chinês. Os EUA foram a única grande potência que sempre defendeu a política de uma só China e mais se opuseram ao seu desmembramento. Em suma, é abusivo pensar que a atual política externa da China é o resultado inevitável da história passada, ela é o resultado de opções e conveniências políticas recentes.

Qual é a lição histórica mais relevante para analisar a ascensão chinesa? Há um padrão histórico recorrente: o surgimento duma grande potência gera tensões e conflitos, em particular com a grande potência tradicionalmente dominante. O padrão foi identificado pela primeira vez por um famoso político e historiador ateniense do século V a.C., por isso é muitas vezes designado de armadilha de Tucídides. Tal como Atenas e Esparta na Antiguidade, a China e os EUA de hoje estão condenados a desentenderem-se. Esperemos que a grande mudança que teve lugar desde 1945 – o surgimento de armas nucleares – leve a que esse desentendimento seja gerido da forma mais contida de uma Segunda Guerra Fria e não da forma mais violenta e potencialmente catastrófica de uma Terceira Guerra Mundial.
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