MEDIÇÃO DE TERRA

MEDIÇÃO DE TERRA
MEDIÇÃO DE TERRAS

sábado, 11 de março de 2023

A sedução do controle

 



Reescrever livros, derrubar monumentos... No conjunto, o sinal é claro: devagar, vamos assoprando o fogo de uma cultura do medo e da conformidade. Fernando Schüler para a revista Veja:


No início do ano passado, Jordan Peterson já havia se demitido da Universidade de Toronto. “Meus alunos não recebiam bolsas, minhas visões me tornaram persona non grata, a agenda política se misturou aos critérios acadêmicos.” Foi banido do Twitter e, meses depois, resgatado por Elon Musk. Agora o caldo entornou mais uma vez. O College of Psychologists de Ontário determinou que ele faça um “curso de reeducação digital”. A acusação é basicamente a mesma, girando em torno do uso “incorreto” de pronomes e de ter opinado como “não bonita” uma modelo com roupa de banho plus size. O curso é um intensivo de politicamente correto, em que Jordan será ensinado sobre quais palavras e ideias pode ou não usar. Terá de se tratar com um psicólogo, e só será liberado se o coaching achar que ele está reeducado. Quando li isto, achei que era uma pegadinha. Ou uma versão atualizada de 1984, de Orwell. Mas não, era o Canadá atual. A resposta de Jordan foi clara: “Não vou me submeter”. E mais: “Além de não ter feito nada errado, me comunico de boa-fé. É isso”.

O caso de Jordan me veio à cabeça quando li o relato algo kafkiano da situação vivida na defesa de uma tese de doutorado, em uma de nossas universidades federais. A tese versava sobre “governança algorítmica” e foi acusada por um membro da banca de “autoritária, machista e racista”. Seria “machista” por constatar que “as mulheres não eram tratadas como cidadãs na Atenas do século V a.C.”, e “racista” por não identificar um algoritmo como discriminatório, e sim o sistema carcerário cujos dados eram processados pelo algoritmo.

De quebra, seria também machista por não citar o “golpe de 2016”, contra Dilma, em sua breve história da democracia. No final, a tese teve de ser cortada e ficou um “Frankenstein”, diz o autor. Ele se submeteu. Era o jeito. Dou-lhe razão. Vale o mesmo para uma enorme quantidade de professores. Tempos atrás, um colega do Maranhão comentou comigo que também havia sido convidado a fazer um curso de “reeducação”, como o de Jordan. “Nunca tive preconceito contra ninguém”, me disse, incomodado, “mas agora sou suspeito”. Disse que iria engolir. “Preciso do emprego, não tenho como arriscar.”

O que essas coisas nos dizem? Em que momento nos tornamos todos suspeitos, vivendo em um mundo onde concordar com os disciplinamentos mais estranhos virou questão de sobrevivência? Intuo que isso tenha a ver com o que chamei, em outro texto, de “sociedade da vigilância”, o panóptico difuso no qual se converteu a geringonça digital sob a qual vivemos. Dias atrás li um texto de Glenn Greenwald em que ele atribui a atual fúria reguladora à “arrogância”. A arrogância que nos faz cultivar não só a ideia pífia de que detemos a verdade, como a de que dispomos de um mandato para enfiar a nossa verdade goela abaixo dos outros. Ideias, diga-se de passagem, contra as quais se construiu o melhor da civilização moderna. O ceticismo, que nos levou à tolerância; a dúvida sistemática, que nos abriu o caminho da ciência; o respeito à diferença, que está na base das sociedades de direitos.

Vamos nos tornando uma sociedade seduzida pelo controle. Seu personagem típico é o sujeito que não só deseja afirmar sua própria maneira de viver, mas exige que os outros se ajustem de modo a não ferir a sua sensibilidade. Talvez sem perceber, passamos do que o filósofo Charles Taylor chama de cultura da “autenticidade”, dada pelo direito de cada um viver nos seus próprios termos, para uma era de narcisismo difuso. A fronteira por vezes tênue entre um direito negativo à não interferência no modo como desejamos viver, e nosso direito positivo de regular a vida dos outros. Daí o ridículo contemporâneo. Ele vai desde o índex de fantasias proibidas, no Carnaval, até a fúria reguladora sobre a arte. Ainda esta semana, lia sobre como o clássico de Roald Dahl, A Fantástica Fábrica de Chocolate, vem sendo reescrito, de modo a se adaptar à correção política. Na Inglaterra, causou certo furor o relatório de uma comissão para a prevenção do extremismo, patrocinada pelo governo, apontando uma série de livros que representariam “riscos de radicalização e incentivo à extrema direita”. Entre eles, a série Civilização, de Kenneth Clark, O Senhor dos Anéis e clássicos como O Admirável Mundo Novo. Seria preciso proteger os súditos ingleses de sua própria herança cultural. Há algo patético aí, mas a lógica “esses livros e filmes são perigosos porque de algum modo incentivam as ideias erradas” está instalada.

Cada um desses exem­plos tem um quê de banalidade. Reescrever livros, derrubar monumentos, vetar letras de música, fazer listas de palavras proibidas. No conjunto, o sinal é claro: devagar, vamos assoprando o fogo de uma cultura do medo e da conformidade. Por vias tortas, parecemos voltar a algum momento do século XIX, quando uma geração de intelectuais se rebelou contra a “mediocrização da cultura”, na expressão de Nietzsche. Contra a sociedade de massas ascendente e sua “intolerância a qualquer demonstração acentuada de individualidade”, como dizia Mill, em On Liberty.

É curioso ler sobre essas coisas, um século e meio depois. Muita gente imaginou que a era digital daria vazão a uma cultura de liberdade e entendimento. Isso aconteceu, de alguma forma, mas com o passar do tempo os ventos mudaram. Junto com a liberdade veio o poder difuso, dos indivíduos, das tribos, e com ele o desejo de controle. E é nessa batida que vamos reconstruindo, tijolo a tijolo, uma sociedade dada a “prescrever regras gerais de conduta”, cuja “única grande transgressão é a vontade própria” e onde “todo o bem está abrangido na obediência”, nas palavras que Mill usou para descrever o vezo calvinista de sua época.

Movidos pela pavorosa hipótese de que alguma sensibilidade seja ferida, parecemos novamente decididos a eliminar o risco, a domesticar a cultura. O problema é que há um custo nisso tudo. Me lembrei disso vendo Arkangel, episódio de Black Mirror. Ele conta a história de uma mãe obcecada em proteger a própria filha. Ela insere um chip na cabeça da menina, que lhe permite acompanhar todos os seus movimentos e apagar de seu campo de visão tudo o que é agressivo. Um cachorro raivoso, revistas de sacanagem, imagens de sangue. Tudo o que pode afetar sua sensibilidade. O resultado é uma garota incapaz de lidar, ela própria, com o sofrimento e a rudeza da vida.

É apenas uma peça de ficção, mas quem sabe seja uma dessas tantas vezes em que a arte imita a vida. Nos dá o sinal de uma maré que vem subindo, lentamente, e na qual valeria prestarmos atenção. Em um documento oficial britânico, vários livros são destacados, cuja posse ou leitura pode apontar para um grave pensamento errado e, portanto, para uma potencial radicalização.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 8 de março de 2023, edição nº 2831
Postado há por

Nenhum comentário:

Postar um comentário