Reescrever livros, derrubar monumentos... No conjunto, o sinal é claro: devagar, vamos assoprando o fogo de uma cultura do medo e da conformidade. Fernando Schüler para a revista Veja:
No
início do ano passado, Jordan Peterson já havia se demitido da
Universidade de Toronto. “Meus alunos não recebiam bolsas, minhas visões
me tornaram persona non grata, a agenda política se misturou aos
critérios acadêmicos.” Foi banido do Twitter e, meses depois, resgatado
por Elon Musk. Agora o caldo entornou mais uma vez. O College of
Psychologists de Ontário determinou que ele faça um “curso de reeducação
digital”. A acusação é basicamente a mesma, girando em torno do uso
“incorreto” de pronomes e de ter opinado como “não bonita” uma modelo
com roupa de banho plus size. O curso é um intensivo de politicamente
correto, em que Jordan será ensinado sobre quais palavras e ideias pode
ou não usar. Terá de se tratar com um psicólogo, e só será liberado se o
coaching achar que ele está reeducado. Quando li isto, achei que era
uma pegadinha. Ou uma versão atualizada de 1984, de Orwell. Mas não, era
o Canadá atual. A resposta de Jordan foi clara: “Não vou me submeter”. E
mais: “Além de não ter feito nada errado, me comunico de boa-fé. É
isso”.
O
caso de Jordan me veio à cabeça quando li o relato algo kafkiano da
situação vivida na defesa de uma tese de doutorado, em uma de nossas
universidades federais. A tese versava sobre “governança algorítmica” e
foi acusada por um membro da banca de “autoritária, machista e racista”.
Seria “machista” por constatar que “as mulheres não eram tratadas como
cidadãs na Atenas do século V a.C.”, e “racista” por não identificar um
algoritmo como discriminatório, e sim o sistema carcerário cujos dados
eram processados pelo algoritmo.
De
quebra, seria também machista por não citar o “golpe de 2016”, contra
Dilma, em sua breve história da democracia. No final, a tese teve de ser
cortada e ficou um “Frankenstein”, diz o autor. Ele se submeteu. Era o
jeito. Dou-lhe razão. Vale o mesmo para uma enorme quantidade de
professores. Tempos atrás, um colega do Maranhão comentou comigo que
também havia sido convidado a fazer um curso de “reeducação”, como o de
Jordan. “Nunca tive preconceito contra ninguém”, me disse, incomodado,
“mas agora sou suspeito”. Disse que iria engolir. “Preciso do emprego,
não tenho como arriscar.”
O
que essas coisas nos dizem? Em que momento nos tornamos todos
suspeitos, vivendo em um mundo onde concordar com os disciplinamentos
mais estranhos virou questão de sobrevivência? Intuo que isso tenha a
ver com o que chamei, em outro texto, de “sociedade da vigilância”, o
panóptico difuso no qual se converteu a geringonça digital sob a qual
vivemos. Dias atrás li um texto de Glenn Greenwald em que ele atribui a
atual fúria reguladora à “arrogância”. A arrogância que nos faz cultivar
não só a ideia pífia de que detemos a verdade, como a de que dispomos
de um mandato para enfiar a nossa verdade goela abaixo dos outros.
Ideias, diga-se de passagem, contra as quais se construiu o melhor da
civilização moderna. O ceticismo, que nos levou à tolerância; a dúvida
sistemática, que nos abriu o caminho da ciência; o respeito à diferença,
que está na base das sociedades de direitos.
Vamos
nos tornando uma sociedade seduzida pelo controle. Seu personagem
típico é o sujeito que não só deseja afirmar sua própria maneira de
viver, mas exige que os outros se ajustem de modo a não ferir a sua
sensibilidade. Talvez sem perceber, passamos do que o filósofo Charles
Taylor chama de cultura da “autenticidade”, dada pelo direito de cada um
viver nos seus próprios termos, para uma era de narcisismo difuso. A
fronteira por vezes tênue entre um direito negativo à não interferência
no modo como desejamos viver, e nosso direito positivo de regular a vida
dos outros. Daí o ridículo contemporâneo. Ele vai desde o índex de
fantasias proibidas, no Carnaval, até a fúria reguladora sobre a arte.
Ainda esta semana, lia sobre como o clássico de Roald Dahl, A Fantástica
Fábrica de Chocolate, vem sendo reescrito, de modo a se adaptar à
correção política. Na Inglaterra, causou certo furor o relatório de uma
comissão para a prevenção do extremismo, patrocinada pelo governo,
apontando uma série de livros que representariam “riscos de
radicalização e incentivo à extrema direita”. Entre eles, a série
Civilização, de Kenneth Clark, O Senhor dos Anéis e clássicos como O
Admirável Mundo Novo. Seria preciso proteger os súditos ingleses de sua
própria herança cultural. Há algo patético aí, mas a lógica “esses
livros e filmes são perigosos porque de algum modo incentivam as ideias
erradas” está instalada.
Cada
um desses exemplos tem um quê de banalidade. Reescrever livros,
derrubar monumentos, vetar letras de música, fazer listas de palavras
proibidas. No conjunto, o sinal é claro: devagar, vamos assoprando o
fogo de uma cultura do medo e da conformidade. Por vias tortas,
parecemos voltar a algum momento do século XIX, quando uma geração de
intelectuais se rebelou contra a “mediocrização da cultura”, na
expressão de Nietzsche. Contra a sociedade de massas ascendente e sua
“intolerância a qualquer demonstração acentuada de individualidade”,
como dizia Mill, em On Liberty.
É
curioso ler sobre essas coisas, um século e meio depois. Muita gente
imaginou que a era digital daria vazão a uma cultura de liberdade e
entendimento. Isso aconteceu, de alguma forma, mas com o passar do tempo
os ventos mudaram. Junto com a liberdade veio o poder difuso, dos
indivíduos, das tribos, e com ele o desejo de controle. E é nessa batida
que vamos reconstruindo, tijolo a tijolo, uma sociedade dada a
“prescrever regras gerais de conduta”, cuja “única grande transgressão é
a vontade própria” e onde “todo o bem está abrangido na obediência”,
nas palavras que Mill usou para descrever o vezo calvinista de sua
época.
Movidos
pela pavorosa hipótese de que alguma sensibilidade seja ferida,
parecemos novamente decididos a eliminar o risco, a domesticar a
cultura. O problema é que há um custo nisso tudo. Me lembrei disso vendo
Arkangel, episódio de Black Mirror. Ele conta a história de uma mãe
obcecada em proteger a própria filha. Ela insere um chip na cabeça da
menina, que lhe permite acompanhar todos os seus movimentos e apagar de
seu campo de visão tudo o que é agressivo. Um cachorro raivoso, revistas
de sacanagem, imagens de sangue. Tudo o que pode afetar sua
sensibilidade. O resultado é uma garota incapaz de lidar, ela própria,
com o sofrimento e a rudeza da vida.
É
apenas uma peça de ficção, mas quem sabe seja uma dessas tantas vezes
em que a arte imita a vida. Nos dá o sinal de uma maré que vem subindo,
lentamente, e na qual valeria prestarmos atenção. Em um documento
oficial britânico, vários livros são destacados, cuja posse ou leitura
pode apontar para um grave pensamento errado e, portanto, para uma
potencial radicalização.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 8 de março de 2023, edição nº 2831
Postado há 5 days ago por Orlando Tambosi
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