MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

sábado, 11 de março de 2023

A higienização da cultura

 BLOG  ORLANDO  TAMBOSI



Os militantes woke resolveram reescrever a literatura e limitar a profissão de ator. Dagomir Marquezi para a Oeste:


O site History A2Z produziu uma longa lista de filmes “controversos”. Alguns exemplos:

Nina (2016) — A biografia da cantora Nina Simone ousou colocar no seu papel uma mulata, Zoe Saldana. Segundo o History A2Z, o ator ou a atriz têm de ter o mesmo tom de pele do personagem.

Zoe Saldana, como a cantora Nina Simone, no filme Nina 

O Silencio dos Inocentes (1991) — O astro do filme acabou sendo o refinado serial killer Hannibal Lecter (Anthony Hopkins). E nem todos se lembram que o filme girava em torno de Jame Gumb (Ted Levine), um homossexual que sequestrava garotas para arrancar sua pele, pois ele queria viver uma nova identidade. Segundo o History A2Z, “ativistas dos direitos queer criticaram o filme por perpetuar estereótipos negativos associados à comunidade”.

Cena do filme O Silêncio dos Inocentes 

Príncipe da Pérsia (2010) — Baseado num videogame, tornou-se “problemático”, porque foi interpretado pelo “branco” Jake Gyllenhaal, no lugar de algum “ator do Oriente Médio”.

Pôster do filme O Príncipe da Pérsia 

Clube de Compras Dallas (2013) — O grande problema dessa história heroica da busca da cura da aids está, segundo o History A2Z, no casting: “Muitos questionaram a escolha de Jared Leto, uma pessoa não trans, para o papel”.

Cena do filme Clube de Compras Dallas 

The Lone Ranger (2013) — Baseado numa série de enorme sucesso, foi um fracasso de bilheteria. Segundo o site, a causa do fracasso foi ter sido escalado o branco Johnny Depp para o papel do índio Tonto. “Teria sido uma ótima maneira de um ator nativo norte-americano mostrar suas habilidades.”

Cena do filme O Cavaleiro Solitário 

Avatar (2009) — O diretor James Cameron se tornou o rei do mundo politicamente correto com Avatar — em que os “povos originários” de um planeta são explorados por capitalistas maus ligados a militares ainda piores. Mesmo assim, “muitos disseram que Avatar glorificou temas problemáticos de colonização e salvacionismo branco”. (Para sua coleção de ofensas: “salvacionismo branco” se refere a situações em que pessoas brancas surgem para salvar povos nativos, criando uma situação de dependência.)

Pôster do filme Avatar

A Garota Dinamarquesa (2015) — É a história real da artista dinamarquesa Lili Elbe, que realizou uma das primeiras cirurgias de mudança de sexo. Talvez seja o filme mais pró-trans de todos os tempos. Não adiantou. O protagonista Eddie Redmayne, segundo a History A2Z, “admitiu que aceitar o papel de Elbe neste filme ‘foi um erro’, à luz do fato que já existe uma falta de representação LGBTQI+ em Hollywood”.

Cena do Filme A Garota Dinamarquesa 

“Atuar é uma arte performática que envolve muito mais do que apenas poder chorar sob comando”, define a Enciclopédia Britânica. “Os atores exercem controle supremo sobre seus movimentos de voz, corpo e facial, de modo a transmitir de maneira eficaz e crítica a experiência emocional dos personagens que eles representam.”

Ou seja, um ator ou atriz deve dar a sua interpretação de que é outra pessoa, seja Hamlet, Rambo, Macunaíma, seja a Bela Adormecida. Quanto mais ele conseguir se transformar e reinventar sua personagem, mais admirada será sua atuação e mais valorizado seu talento. Dustin Hoffman virou uma unanimidade, em 1982, quando se transformou numa mulher, no filme Tootsie. Hoje esses militantes iam exigir que o papel de um homem interpretando uma mulher fosse interpretado por uma mulher. Eles ainda não entenderam o sentido da palavra “interpretar”.

A história do cinema está cheia de exemplos de incorreção política. Começando pelo filme que inaugurou a moderna linguagem cinematográfica, O Nascimento de uma Nação, de 1915. Os heróis do filme são os racistas da Ku Klux Klan, o que é totalmente condenável hoje, 108 anos depois. Mas que não tira o valor artístico de um filme pioneiro em todos os sentidos — foi o primeiro a ter um grande orçamento, o primeiro a contar uma história épica e praticamente inventou a gramática da linguagem cinematográfica, com o uso de efeitos especiais, desfocamento, edição fragmentada e rostos em close-ups. Nada disso existia antes do filme de D. W. Griffith.

Outros clássicos do cinema não seriam permitidos hoje. …E o Vento Levou (1939) mostrava os criados e os escravos como caricaturas, seres exóticos e engraçados. Vamos apagar por isso todas as cópias de …E o Vento Levou? Ou vamos preservá-lo como a obra de arte que é?

Na última semana de fevereiro, esses inquisidores “do bem” conseguiram tornar as coisas piores. E ainda mais assustadoras.
A sanitização de James Bond

Em abril, todos os livros de James Bond serão relançados, para comemorar os 70 anos da criação do agente 007. A editora já avisou que a nova edição foi “sanitizada” de referências consideradas racistas ou machistas.

Quem comprar essa nova versão não vai saber o que Ian Fleming escreveu na escrivaninha de sua casa de praia na Jamaica. Virá um texto que seus editores, seguindo orientações sabe-se lá de quem, acham que o autor deveria ter dito sete décadas antes.

Segundo anunciou a editora, a palavra “nigger”, que não escandalizava tanto em 1953, se tornou ofensiva com o tempo e foi substituída por “black person”, ou “pessoa negra”. E se a expressão “nigger” foi proferida por um vilão, que, com isso, demonstrou ser racista? Não importa. Apaga a palavra.

Em outros os casos, a etnia da personagem desaparece. Ian Fleming descreveu um barman no livro Thunderball como um negro. Agora esse barman não tem mais cor de pele. Qual o problema de descrever um barman como negro? E se fosse um paquistanês? E se fosse um esquimó? E se fosse um maori? E se fosse um chinês? Poderia ser descrito dessas formas? Ou o problema dos revisores de James Bond é apenas com os negros? Afinal, quem é o racista?

Gloria Hendry, Roger Moore e Jane Seymour, em Com 007 Viva e Deixe Morrer 

A Fantástica Fábrica de Censura

Dez dias antes da chocante decisão da Ian Fleming Publications, a editora britânica Penguin já havia anunciado que estava fazendo a mesma faxina nos livros infantis de Roald Dahl, autor de clássicos como A Fantástica Fábrica de Chocolate e Matilda.

A censura dessa vez foi sugerida por uma ONG de censores chamada Inclusive Minds (“Mentes Inclusivas”). Essa ONG foi cofundada pela “consultora” Alexandra Strick, que declara na sua conta da rede social LinkedIn ter “paixão por dar a pessoas jovens uma voz real”. Essa “voz real” criada por Strick e sua turma resultou que palavras como “gordo” e “feia” foram extirpadas dos livros de Dahl, para que os leitores não se sentissem “ofendidos”.

É esse o estranho mundo criado por essa chamada “esquerda identitária”. Nesse mundo mental, um leitor pode ficar terrivelmente traumatizado se ler em algum livro que um personagem chamou o outro de “feio”. Para não traumatizar ninguém, apaga a palavra.

Livro infantil Matilda, de Roald Dahl 

Donos da virtude

A nova edição de James Bond virá acompanhada desse aviso: “Este livro foi escrito em um momento em que termos e atitudes que poderiam ser considerados ofensivos pelos leitores modernos eram comuns. Várias atualizações foram feitas nesta edição, mantendo-se o mais próximo possível do texto original e do período em que é ambientado.”

Esse aviso poderia já resolver o assunto, com a constatação óbvia de que um livro escrito em 1953, 1850 ou 1923 reflete o momento em que foi escrito. A Odisseia, de Homero, reflete a realidade vivida no século 8 a.C. Dom Casmurro reflete o Brasil de 1899. Cem Anos de Solidão reflete a Colômbia de 1967. Parece a coisa mais óbvia do mundo. Exceto para esses agentes da higienização cultural, os donos absolutos da virtude.

Esses desinfetantes de potenciais ofensas não se importam com quem discorda deles. Estão a serviço de uma causa superior. Eles não têm limites. Hoje estão substituindo “crioulo” por “pessoa negra”. Amanhã vão transformar James Bond num queer de origem latina. Sherlock Holmes e Watson, em um casal. Doutor Jivago, num criminoso. Vão apagar nos livros as “expressões colonialistas” dos discursos de Winston Churchill. Sua famosa frase de “sangue, suor e lágrimas” vai ser banida por representar “discurso de ódio”.

Mudar palavras num livro depende de nossa passividade. Se esses militantes não encontrarem resistência, vão manipular digitalmente filmes e séries, para que se encaixem nessa ideologia ofensiva que trata negros e homossexuais (entre outros) como seres frágeis e incapazes de se defender. Ian Fleming também não está aqui para defender a integridade de sua obra. Nem Bocage, nem Henry Fielding, nem Sófocles, nem William Shakespeare, nem José de Alencar, Miguel de Cervantes, Leon Tolstoy, Eça de Queiroz ou Lima Barreto.

Apagar e distorcer nosso passado vai tirar de nós a experiência da evolução. Vai nos fazer estacionar para sempre na areia movediça de um presente artificial, criado por militantes totalitários e alheios à realidade. Resistir é preciso a esses pequenos tiranos, até em nome das futuras gerações. Temos uma cultura e uma civilização a proteger deles. E podemos lutar com atos mínimos, muito simples.

Eu, por exemplo, já comprei as obras completas de Ian Fleming. Pelo menos na minha casa, as palavras escritas por ele estarão protegidas desses maníacos. Preservar obras originais e guardar aquele velho DVD com um desses filmes polêmicos passou a ser — quem diria — um ato de resistência.
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