BLOG ORLANDO TAMBOSI
Os militantes woke resolveram reescrever a literatura e limitar a profissão de ator. Dagomir Marquezi para a Oeste:
O site History A2Z produziu uma longa lista de filmes “controversos”. Alguns exemplos:
Nina
(2016) — A biografia da cantora Nina Simone ousou colocar no seu papel
uma mulata, Zoe Saldana. Segundo o History A2Z, o ator ou a atriz têm de
ter o mesmo tom de pele do personagem.
Zoe Saldana, como a cantora Nina Simone, no filme Nina
O
Silencio dos Inocentes (1991) — O astro do filme acabou sendo o
refinado serial killer Hannibal Lecter (Anthony Hopkins). E nem todos se
lembram que o filme girava em torno de Jame Gumb (Ted Levine), um
homossexual que sequestrava garotas para arrancar sua pele, pois ele
queria viver uma nova identidade. Segundo o History A2Z, “ativistas dos
direitos queer criticaram o filme por perpetuar estereótipos negativos
associados à comunidade”.
Cena do filme O Silêncio dos Inocentes
Príncipe
da Pérsia (2010) — Baseado num videogame, tornou-se “problemático”,
porque foi interpretado pelo “branco” Jake Gyllenhaal, no lugar de algum
“ator do Oriente Médio”.
Pôster do filme O Príncipe da Pérsia
Clube
de Compras Dallas (2013) — O grande problema dessa história heroica da
busca da cura da aids está, segundo o History A2Z, no casting: “Muitos
questionaram a escolha de Jared Leto, uma pessoa não trans, para o
papel”.
Cena do filme Clube de Compras Dallas
The
Lone Ranger (2013) — Baseado numa série de enorme sucesso, foi um
fracasso de bilheteria. Segundo o site, a causa do fracasso foi ter sido
escalado o branco Johnny Depp para o papel do índio Tonto. “Teria sido
uma ótima maneira de um ator nativo norte-americano mostrar suas
habilidades.”
Cena do filme O Cavaleiro Solitário
Avatar
(2009) — O diretor James Cameron se tornou o rei do mundo politicamente
correto com Avatar — em que os “povos originários” de um planeta são
explorados por capitalistas maus ligados a militares ainda piores. Mesmo
assim, “muitos disseram que Avatar glorificou temas problemáticos de
colonização e salvacionismo branco”. (Para sua coleção de ofensas:
“salvacionismo branco” se refere a situações em que pessoas brancas
surgem para salvar povos nativos, criando uma situação de dependência.)
Pôster do filme Avatar
A
Garota Dinamarquesa (2015) — É a história real da artista dinamarquesa
Lili Elbe, que realizou uma das primeiras cirurgias de mudança de sexo.
Talvez seja o filme mais pró-trans de todos os tempos. Não adiantou. O
protagonista Eddie Redmayne, segundo a History A2Z, “admitiu que aceitar
o papel de Elbe neste filme ‘foi um erro’, à luz do fato que já existe
uma falta de representação LGBTQI+ em Hollywood”.
Cena do Filme A Garota Dinamarquesa
“Atuar
é uma arte performática que envolve muito mais do que apenas poder
chorar sob comando”, define a Enciclopédia Britânica. “Os atores exercem
controle supremo sobre seus movimentos de voz, corpo e facial, de modo a
transmitir de maneira eficaz e crítica a experiência emocional dos
personagens que eles representam.”
Ou
seja, um ator ou atriz deve dar a sua interpretação de que é outra
pessoa, seja Hamlet, Rambo, Macunaíma, seja a Bela Adormecida. Quanto
mais ele conseguir se transformar e reinventar sua personagem, mais
admirada será sua atuação e mais valorizado seu talento. Dustin Hoffman
virou uma unanimidade, em 1982, quando se transformou numa mulher, no
filme Tootsie. Hoje esses militantes iam exigir que o papel de um homem
interpretando uma mulher fosse interpretado por uma mulher. Eles ainda
não entenderam o sentido da palavra “interpretar”.
A
história do cinema está cheia de exemplos de incorreção política.
Começando pelo filme que inaugurou a moderna linguagem cinematográfica, O
Nascimento de uma Nação, de 1915. Os heróis do filme são os racistas da
Ku Klux Klan, o que é totalmente condenável hoje, 108 anos depois. Mas
que não tira o valor artístico de um filme pioneiro em todos os sentidos
— foi o primeiro a ter um grande orçamento, o primeiro a contar uma
história épica e praticamente inventou a gramática da linguagem
cinematográfica, com o uso de efeitos especiais, desfocamento, edição
fragmentada e rostos em close-ups. Nada disso existia antes do filme de
D. W. Griffith.
Outros
clássicos do cinema não seriam permitidos hoje. …E o Vento Levou (1939)
mostrava os criados e os escravos como caricaturas, seres exóticos e
engraçados. Vamos apagar por isso todas as cópias de …E o Vento Levou?
Ou vamos preservá-lo como a obra de arte que é?
Na última semana de fevereiro, esses inquisidores “do bem” conseguiram tornar as coisas piores. E ainda mais assustadoras.
A sanitização de James Bond
Em
abril, todos os livros de James Bond serão relançados, para comemorar
os 70 anos da criação do agente 007. A editora já avisou que a nova
edição foi “sanitizada” de referências consideradas racistas ou
machistas.
Quem
comprar essa nova versão não vai saber o que Ian Fleming escreveu na
escrivaninha de sua casa de praia na Jamaica. Virá um texto que seus
editores, seguindo orientações sabe-se lá de quem, acham que o autor
deveria ter dito sete décadas antes.
Segundo
anunciou a editora, a palavra “nigger”, que não escandalizava tanto em
1953, se tornou ofensiva com o tempo e foi substituída por “black
person”, ou “pessoa negra”. E se a expressão “nigger” foi proferida por
um vilão, que, com isso, demonstrou ser racista? Não importa. Apaga a
palavra.
Em
outros os casos, a etnia da personagem desaparece. Ian Fleming
descreveu um barman no livro Thunderball como um negro. Agora esse
barman não tem mais cor de pele. Qual o problema de descrever um barman
como negro? E se fosse um paquistanês? E se fosse um esquimó? E se fosse
um maori? E se fosse um chinês? Poderia ser descrito dessas formas? Ou o
problema dos revisores de James Bond é apenas com os negros? Afinal,
quem é o racista?
Gloria Hendry, Roger Moore e Jane Seymour, em Com 007 Viva e Deixe Morrer
A Fantástica Fábrica de Censura
Dez
dias antes da chocante decisão da Ian Fleming Publications, a editora
britânica Penguin já havia anunciado que estava fazendo a mesma faxina
nos livros infantis de Roald Dahl, autor de clássicos como A Fantástica
Fábrica de Chocolate e Matilda.
A
censura dessa vez foi sugerida por uma ONG de censores chamada
Inclusive Minds (“Mentes Inclusivas”). Essa ONG foi cofundada pela
“consultora” Alexandra Strick, que declara na sua conta da rede social
LinkedIn ter “paixão por dar a pessoas jovens uma voz real”. Essa “voz
real” criada por Strick e sua turma resultou que palavras como “gordo” e
“feia” foram extirpadas dos livros de Dahl, para que os leitores não se
sentissem “ofendidos”.
É
esse o estranho mundo criado por essa chamada “esquerda identitária”.
Nesse mundo mental, um leitor pode ficar terrivelmente traumatizado se
ler em algum livro que um personagem chamou o outro de “feio”. Para não
traumatizar ninguém, apaga a palavra.
Livro infantil Matilda, de Roald Dahl
Donos da virtude
A
nova edição de James Bond virá acompanhada desse aviso: “Este livro foi
escrito em um momento em que termos e atitudes que poderiam ser
considerados ofensivos pelos leitores modernos eram comuns. Várias
atualizações foram feitas nesta edição, mantendo-se o mais próximo
possível do texto original e do período em que é ambientado.”
Esse
aviso poderia já resolver o assunto, com a constatação óbvia de que um
livro escrito em 1953, 1850 ou 1923 reflete o momento em que foi
escrito. A Odisseia, de Homero, reflete a realidade vivida no século 8
a.C. Dom Casmurro reflete o Brasil de 1899. Cem Anos de Solidão reflete a
Colômbia de 1967. Parece a coisa mais óbvia do mundo. Exceto para esses
agentes da higienização cultural, os donos absolutos da virtude.
Esses
desinfetantes de potenciais ofensas não se importam com quem discorda
deles. Estão a serviço de uma causa superior. Eles não têm limites. Hoje
estão substituindo “crioulo” por “pessoa negra”. Amanhã vão transformar
James Bond num queer de origem latina. Sherlock Holmes e Watson, em um
casal. Doutor Jivago, num criminoso. Vão apagar nos livros as
“expressões colonialistas” dos discursos de Winston Churchill. Sua
famosa frase de “sangue, suor e lágrimas” vai ser banida por representar
“discurso de ódio”.
Mudar
palavras num livro depende de nossa passividade. Se esses militantes
não encontrarem resistência, vão manipular digitalmente filmes e séries,
para que se encaixem nessa ideologia ofensiva que trata negros e
homossexuais (entre outros) como seres frágeis e incapazes de se
defender. Ian Fleming também não está aqui para defender a integridade
de sua obra. Nem Bocage, nem Henry Fielding, nem Sófocles, nem William
Shakespeare, nem José de Alencar, Miguel de Cervantes, Leon Tolstoy, Eça
de Queiroz ou Lima Barreto.
Apagar
e distorcer nosso passado vai tirar de nós a experiência da evolução.
Vai nos fazer estacionar para sempre na areia movediça de um presente
artificial, criado por militantes totalitários e alheios à realidade.
Resistir é preciso a esses pequenos tiranos, até em nome das futuras
gerações. Temos uma cultura e uma civilização a proteger deles. E
podemos lutar com atos mínimos, muito simples.
Eu,
por exemplo, já comprei as obras completas de Ian Fleming. Pelo menos
na minha casa, as palavras escritas por ele estarão protegidas desses
maníacos. Preservar obras originais e guardar aquele velho DVD com um
desses filmes polêmicos passou a ser — quem diria — um ato de
resistência.
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