Acreditar que as mulheres serão mais livres e felizes sob um regime no qual o Estado se intromete a tal ponto nas suas vidas é sinal do grau de delírio a que pode chegar a doutrinação ideológica, bem como da falta de limites dessa doutrinação. Luciano Trigo para a Gazeta do Povo:
No artigo “As origens intelectuais da defesa do aborto”,
examinei de que forma o movimento feminista, originalmente liberal e
democrático, se radicalizou a partir dos anos 60 e passou a lutar não
pela igualdade de direitos entre homens e mulheres, mas pela abolição de
todos os alicerces do chamado patriarcado – o que conduziria,
supostamente, à libertação feminina.
Analisei,
também, como se estabeleceu a confluência entre autoras ocidentais da
segunda onda do feminismo, como Andrea Dworkin e Shulamith Firestone,
que anteciparam mudanças comportamentais que estão hoje em pleno curso, e
o programa comunista para a transformação radical do papel social das
mulheres, tal como anunciado pela revolucionária Alexandra Kollontai já
na década de 20 do século passado.
Demonstrei,
por fim, que a defesa do aborto como ferramenta de luta social e
empoderamento das mulheres foi o elemento comum, a interseção a partir
da qual o socialismo cooptou o feminismo e o feminismo se associou à
esquerda.
Pois
bem, mas como o comunismo real (não o comunismo abstrato que só existe
na cabeça dos jovens doutrinados pelas escolas com partido) tratou as
mulheres?
O
estudo de campo mais completo sobre o assunto foi publicado no final da
década de 70 por dois médicos russos especializados em questões
sexuais, Mikhail e August Stern. No livro “A vida sexual na União
Soviética”, hoje praticamente esquecido, os autores (aliás pai e filho)
denunciaram a miséria da vida sexual das mulheres (e também dos homens,
naturalmente) sob o tacão da ditadura comunista. A ousadia de suas
pesquisas lhes valeu uma passagem só de ida para um campo de trabalhos
forçados.
Poster
de propaganda soviético de 1941, destinado às mulheres: "Não fale!",
com versos do poeta Shamil Marshak: "Seja vigilante, As paredes têm
ouvidos. Fofocas e conversa fiada podem levar à traição"
Os
Stern relatam que, nos primeiros anos da revolução, as teses de
Kollontai tiveram grande prestígio junto a Lenin: no esforço deliberado
de extinguir a moralidade burguesa dos relacionamentos tradicionais e
destruir a família (projeto já anunciado por Engels em 1884), o Estado
soviético incentivou as mulheres a entender e praticar o sexo como algo
puramente fisiológico, desprovido de qualquer caráter moral ou
espiritual.
A
protagonista de um romance de Kollontai, "O amor de três gerações"
afirma: “A atividade sexual é uma simples necessidade física. Mudo de
amante conforme meu humor. Estou grávida, mas não sei quem é o pai do
meu futuro filho. Dá na mesma".
Mas
o processo de reengenharia social não parou aí: o sexo deveria ser
posto a serviço da causa revolucionária. Nesse espírito de
coletivização, as cidades de Saratov e Vladimir baixaram decretos que
“socializavam” as mulheres e as tornavam “propriedade do Estado”.
Toda
mulher que não fosse casada ficava obrigada, sob pena de castigos
severos, a se inscrever em um “centro de amor livre”, nos quais homens
poderiam usufruir delas, no interesse da revolução. Os filhos que
eventualmente resultassem desses relacionamentos (e não fossem
abortados, é claro) também seriam propriedade do Estado.
Em
um editorial publicado em 7 de maio de 1925, o jornal “Pravda”, órgão
oficial do partido comunista (a palavra “Pravda”, ironicamente,
significa “verdade”: os regimes socialistas sempre se apropriaram do
monopólio da verdade como estratégia para impor suas mentiras), dizia o
seguinte: “Os estudantes desconfiam das jovens comunistas que se negam a
ter relações sexuais com eles. São vistas como pequeno-burguesas
atrasadas, que não souberam se libertar dos preconceitos da antiga
sociedade (...) Não somente a abstinência sexual, mas também a
maternidade, provêm de uma mentalidade burguesa”.
Em
“O livro negro da nova esquerda”, Agustín Laje e Nicolás Márquez
resumiram muito bem a situação da mulher nos primeiros anos da Revolução
Russa: “A ‘mulher livre’ soviética não era senão o canal para o homem
satisfazer suas necessidades fisiológicas. Quando a mulher não se
prestava a tal degradação, sua rejeição era vista em termos de luta de
classes”.
Eles
citam como exemplo o relato de uma jovem, publicado no mesmo jornal: “O
marido de minha amiga propôs que eu dormisse com ele uma noite, porque
sua mulher estava indisposta e não podia satisfazê-lo. Como neguei, ele
me tratou como uma burguesa estúpida, incapaz de elevar-me à altura da
mentalidade comunista”.
O
experimento não deu certo. As consequências sociais desse projeto de
destruição da família implementado nos primeiros anos da revolução foram
nefastas. Desde a sua legalização, já em 1920, o aborto se tornou o
principal método contraceptivo na União Soviética, levando a uma
preocupante diminuição da taxa de natalidade (em 1934, em Moscou,
registravam-se três abortos para cada nascimento). Foi necessário dar
meia-volta.
Com
a ascensão de Stálin ao poder e a deterioração das relações sociais, o
discurso oficial voltou a exaltar a família - desde que subordinada, é
claro, à autoridade e aos interesses do Estado. Às mulheres, agora,
caberia educar seus filhos para o comunismo.
Mas,
longe de desfrutar da prometida liberdade, a mulher soviética média
continuou vivendo durante décadas em condições horrendas: segundo os
autores de “A vida sexual na União Soviética”, espancamentos pelo
marido, alcoolismo, humilhações, estupros, tudo isso fazia parte da
rotina vivida pelas indefesas mulheres sob o regime comunista.
Por
outro lado, qualquer manifestação de vaidade ou feminilidade, como o
uso de maquiagem ou roupas curtas, era considerada decadente e burguesa -
e punida com atividades compulsórias de "reeducação". Como seria de se
esperar, a frigidez se tornou um fenômeno de massa. Para completar o
cenário, sempre segundo os Stern, sob Stálin, o ato sexual na União
Soviética durava em média... 1 minuto. O permanente estado de medo em
que viviam as pessoas, aparentemente, afetava o seu desempenho na cama.
Longe
de desaparecer, porque seria inerente à sociedade burguesa, a
prostituição também se disseminou na União Soviética, ainda que fosse
oficialmente - e hipocritamente - condenada. São famosos os casos de
exploração de meninas, a partir de 13 anos de idade,por líderes
políticos soviéticos, como Lavrenti Beria, o lugar-tenente de Stálin.
Mas, mesmo na vida cotidiana, era comum mulheres pagarem com sexo por
artigos de primeira necessidade, ou por vodca, ou por algum privilégio
que dependesse da burocracia estatal.
“A
vida sexual na União Soviética” não se limita ao relato anedótico da
experiência de um médico sob o stalinismo. O livro faz um exame profundo
da relação entre a sexualidade e um regime totalitário, no qual a
ideologia permeia até mesmo os aspectos mais íntimos da existência
humana: o erotismo, a vida familiar, a maternidade, a educação dos
filhos, as relações amorosas.
Acreditar
que as mulheres serão mais livres e felizes sob um regime no qual o
Estado se intromete a tal ponto nas suas vidas é sinal do grau de
delírio a que pode chegar a doutrinação ideológica, bem como da falta de
limites dessa doutrinação.
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