Pegando-se a régua direita X esquerda de 20 anos atrás, que se pautava pela melhoria da vida dos trabalhadores em oposição à predação patronal, G. K. Chesterton, um conservador inglês, seria muito mais esquerdista do que qualquer identitário da Folha. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
Quatro
pernas, bom; duas pernas, ruim. Mutatis mutandis, este é o princípio
que rege o letrado ocidental médio do século XXI. “Duas pernas”,
sobretudo no Brasil, é qualquer um que possa ser rotulado como
bolsonarista. Mas não é só no Brasil (pois convém falar mal de Bolsonaro
na Europa também), nem é só bolsonarista (até ontem, a ordem era
execrar “trumpistas”). Assim, basta decidir quem é o “duas pernas” do
momento e cuidar para ser um “quatro pernas”. A bondade e a
respeitabilidade não têm luz própria; alcançam-se por mera oposição ao
outro, tachado de vilão. E quando se quiser destruir a reputação de
alguém, bastará acusar-lhe do crime de dois-patismos.
É
uma prática que cresce sobre a covardia, e que degrada o ambiente
cultural. A virtude do intelectual passa a ser o conformismo. Se você
não disser nada de novo, receberá o prêmio de ser deixado em paz pelos
difamadores. O intelectual não pode mais esperar ser reconhecido por
alguma ideia nova. Sérgio Buarque pôde ser aclamado pela ideia do
cordialismo; Raymundo Faoro, pela do patrimonialismo. Estes dois nomes
têm vínculos históricos com o PT. Isto não os impediu de modo algum de
alcançar respeitabilidade fora do seu círculo político. Hoje, porém, a
realidade social do mundo inteiro já está inteiramente explicada pelos
dogmas progressistas, pela “sociologia diversitária”, para usar uma
expressão de Mathieu Bock-Côté. E este é bem preciso ao dizer que “o
progressismo é uma revelação: a civilização em que vivemos é
radicalmente inaceitável. A revelação exige não um paciente trabalho de
releitura da ordem humana, mas antes que se leve esta última a
julgamento, em nome de outra história a ser escrita” (O
multiculturalismo como religião política, p. 83). O estudioso de humanas
tem doravante duas opções viáveis: converter-se em papagaio ou chutar o
pau da barraca.
Para
tornar a situação da esquerda mais ridícula, a sociologia diversitária é
um dogma imposto verticalmente pelo grande capital. O mundo corporativo
já fala abertamente em ESG – sigla de “Governança Social e Ambiental”
–, que culmina com o governo da sociedade por parte de empresas privadas
concertadas entre si, com o povo de fora. A parte social é lacração e a
ambiental é ao estilo Greta Thumberg.
Bezos sim, Marx não
Ou
seja: no frigir dos ovos, após décadas de esquerdismo e anticapitalismo
dominantes, o bom intelectual de esquerda é aquele que tem Jeff Bezos
em conta mais alta do que Karl Marx. Embora eles provavelmente nunca
tenham pensado nesses termos, esse nivelamento está implícito. Afinal,
Marx era um homem do seu tempo: nascido antes da Revelação, não sabia
que o machismo, o racismo e a homotransfobia são piores do que a
exploração do proletariado pelo capital. Jeff Bezos, a seu turno, faz o
possível para redimir os pecados do Ocidente. É verdade que ele é um
homem branco cis hétero bilionário, mas – dirá o intelectual – ele é
esclarecido o bastante para subsidiar o aborto de suas funcionárias. Por
que é bom um capitalista subsidiar aborto? Ora, porque a nova Revelação
disse que as mulheres têm que ter o direito ao aborto e que o aborto
tem que ser normalizado. Que a gravidez é uma forma de controle sobre os
corpos das mulheres, e bom mesmo é sair transando a esmo, sem procriar
nem criar vínculos.
É
claro que o povo não concorda. Assim, cabe ao intelectual esquerdista
esclarecer o povo, seja na marra – criminalizando a sua livre expressão,
por exemplo –, seja via educação, de preferência desde a infância. A
Disney, que é mais uma outra megacorporação, está aí para ajudar. A mãe
vai para o trabalho, porque o salário do marido não basta, e deixa o
filho em casa para ser educado por um monte de CEO esclarecido. Até o departamento de marketing da Burger King tem mais autoridade para educar crianças do que os pais.
Isso é ESG, e isso é um bypass na democracia. Através do ESG, o CEO
progressista manda no filho do evangélico. O intelectual jura que ele
está esclarecendo o capitalista, mas não percebe que ele é peça
descartável, selecionada conforme os interesses patronais.
Há
uma meia dúzia de intelectuais esquerdistas críticos do identitarismo, é
verdade. No entanto, é uma raridade encontrar um que não derreta feito
açúcar perante o risco de ser acusado de dois-patismos. Criticar a
esquerda, sim, desde que isso não fortaleça a “extrema direita
populista” – ou seja, o político eleito pelos trabalhadores. O destino
desse nicho é constituir uma contracultura irrelevante, pois é incapaz
de lidar com o fato de que a “extrema direita” é o único agente da
política institucional a se opor ao identitarismo. O evangélico normal e
o esquerdista à moda antiga vão para o mesmo paredão identitário, mas
só o primeiro esboça uma reação. O segundo não só não esboça nada de
concreto, como ainda ataca a reação. É como se um anticomunista
inveterado, preso em Auschwitz pelos nazistas (que prendiam
conservadores também), pegasse paus e pedras para atacar o Exército
Vermelho em 1945. Uma estupidez estupefaciente.
Há,
entre os letrados, a lealdade à “esquerda” – nem que a “esquerda” seja
essa coisa aí, que jogou a preocupação com igualdade econômica no lixo
para ficar adulando bilionário monopolista. A “esquerda”, hoje, nada
mais é que uma patota de gente “respeitável” que age segundo a pressão
dos seus pares. Há muita venalidade para explicar isso; mas há muita
falta de inteligência também.
Igual à Inglaterra de 100 anos atrás
Pegando-se
a régua direita X esquerda de 20 anos atrás, que se pautava pela
melhoria da vida dos trabalhadores em oposição à predação patronal, G.
K. Chesterton, um conservador inglês, seria muito mais esquerdista do
que qualquer identitário da Folha. Em seus escritos sobre as regulações
progressistas impostas às famílias (vejam-se os livros Eugenia e outras
desgraças e A superstição do divórcio & outros ensaios), defende a
tese geral de que o Estado havia enlouquecido, tendo sido tomado por
pretensos homens de saber voltados à gestão de escravos. Os homens e
mulheres não deveriam mais ser livres para se escolherem uns aos outros;
em vez disso, uma autoridade deveria desfazer casamentos em função da
condição de feeble minded imputada a um dos cônjuges. Se a livre
procriação continuasse a existir, a Inglaterra ficaria disgênica.
Em
vez de olhar para causas sociais do caos nas grandes cidades – que
tinham tudo a ver com o êxodo rural e a miséria do capitalismo primitivo
–, buscavam-se causas físicas a serem resolvidas por cientistas da
natureza, dispensando-se assim qualquer reforma econômica. Com essas
leis “científicas”, o povo era transformado em rato de laboratório: “eu
simplesmente não consigo conceber qualquer pessoa responsável
propondo-se a criar leis [eugênicas] baseadas em nosso saber minguado e
indefinida ignorância sobre a hereditariedade”, dizia Chesterton. Na
época, nem se tinha descoberto o DNA ainda, mas a Ciência já era tão
sabida que ia resolver o problema da degeneração social.
Em
vez de dar ao trabalhador um salário bom para sustentar mulher e
filhos, resolvia-se o problema tirando a esposa (pelo divórcio) e
diminuindo a quantidade de filhos (“controle de natalidade”). O
socialismo, que tinha começado como uma ideia bela e simples, se provara
simples demais para ser correto. Em seguida – há mais de cem anos atrás
– seu nome se tornara um meio de piorar ainda mais a vida do
trabalhador, agora todo regulado e vigiado pelos patrões: “perdeu-se o
ideal da liberdade e o ideal do socialismo foi alterado, até não ser
mais do que uma desculpa para a opressão dos pobres”.
Assim, querem que sejamos felizes sem família, sem casa própria, sem carro, sem sequer eletrodomésticos,
comendo inseto em vez de bife. E se um dos slogans do WEF trazem à
mente os versos “Eu não tenho carro / eu não tenho teto”, da canção
popular “Lepo-lepo”, devo dizer que nem lepo-lepo haverá, porque
ansiedade e depressão são generalizadas, e antidepressivo costuma cortar
libido. Sem carro, sem teto, sem lepo-lepo, comendo inseto. E inseto
requentado num micro-ondas alugado da Amazon ou similar.
Ditadura de pernósticos
Como
o mundo atual lembra muito essa Inglaterra de Chesterton pouco
estudada, acho que cabe ler o que ele dizia dos intelectuais de então.
Afinal, a esquerda de hoje mostra que a adesão ideológica é pífia, o que
importa mesmo é a valorização do pertencimento ao clube de
bem-pensantes – que bem podem ser descritos como janotas, pedantes,
pernósticos. Deixo aqui uma citação escrita no ano de 1910: “O perigo é
que o mundo pode sucumbir sob o poder de uma nova oligarquia – a
oligarquia dos pernósticos. E se alguém me pedir, de bate-pronto (à
maneira dos círculos de debate), a definição de pernóstico, só posso
responder que um pernóstico é um oligarca que nem sequer sabe que é um
oligarca. Um círculo de pequenos pedantes, do alto de uma plataforma,
declara unanimemente (durante uma reunião a que ninguém comparece) que
não há nenhuma diferença entre os deveres sociais dos homens e os das
mulheres, a educação dos homens e a das crianças na sociedade. Abaixo
deles, ferve aquela multidão oceânica de milhões que pensam diferente,
que sempre pensaram diferente e que sempre pensarão. A despeito das
maiorias esmagadoras que conservam a velha teoria da vida, tenho
sinceras dúvidas sobre quem vencerá. Devido à inércia da teologia e de
todos os outros sistemas claros de pensamento, os homens voltaram, em
grande medida, a depender de seus instintos, como os animais. Como
acontece com os animais, seus instintos estão certos; mas, como também
acontece com os animais, esses instintos podem ser domesticados. Diante
da agilidade dos intelectuais e da inércia da multidão, tenho sérias
dúvidas sobre qual dos lados triunfará, muito embora tenha plena certeza
sobre qual deles deveria triunfar” (A superstição do divórcio &
outros ensaios, p. 146).
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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