Como disse Mark Twain, “um gato que se senta num fogão quente nunca mais se sentará num fogão quente. Mas tampouco se sentará num fogão frio”. Fernando Gabeira para O Globo:
Neste
fim de ano, vi o documentário sobre os Beatles. Não me trouxe
lembranças apenas dos intensos anos 60. A música que dá título ao
documentário, “Get back”, teve muita importância há pouco mais de 40
anos, quando voltei do exílio. Eu a cantarolava, enquanto ajuntava
algumas coisas e viajei para o Brasil.
Foi
um momento decisivo. Às vezes, penso o que seria de mim se não
voltasse. Viveria em Estocolmo, passaria as férias no sul de Portugal,
nas Ilhas Gregas? Conheci gente que não voltou de seu exílio. No meu
caso, seria uma escolha fatal.
Quando
desembarquei, tinha uma máquina de escrever portátil vermelha, a
Olivetti Lettera 22. Os funcionários da alfândega a olharam como se
fosse um artefato tributável. A revolução digital ainda era uma névoa no
horizonte.
Fervilhavam
ideias ecológicas na cabeça, mas as mudanças climáticas e os eventos
extremos não eram prioridade. Chamaria de poesia se um amigo baiano,
como na semana passada, me dissesse que os peixes na pista de pouso
pararam o trânsito no Aeroporto de Ilhéus.
Depois
de quase meio século, nossa experiência democrática desembocou na
ascensão de Bolsonaro. É um nó na garganta, mas não a ponto de
desesperar. A democracia americana, mais sólida, acabou desembocando
também na eleição de Trump.
Acontece.
Alguns acham que a ascensão de Bolsonaro foi produto de um golpe,
envolvendo os americanos, mercado financeiro, Faria Lima e o escambau.
Não
quero polemizar. Acho que foi uma escolha popular equivocada,
resultante dos erros na democratização. Minha interpretação no mínimo
contém mais esperança: se tudo aconteceu como fruto dos nossos erros, é
possível corrigi-los e evitar uma recaída. Americanos, mercado
financeiro e Faria Lima são variáveis que não podemos modificar com
facilidade.
A
derrota torna atraente a teoria da conspiração. Até o Iluminismo foi
interpretado como um complô, assim como a Revolução Francesa, a
Independência Americana. Maçons, cavaleiros templários, diferentes
vilões desfilaram pela História.
Bolsonaro
impactou a luta contra a pandemia com seu negacionismo, muitas pessoas
poderiam ter sido salvas. Estimulou a destruição da Amazônia, fez vista
grossa para as queimadas que carbonizaram milhões de animais no
Pantanal.
Foi
um preço alto. A reconstrução não só do país, mas de seu projeto
democrático, não será fácil. O Congresso se protege contra a renovação,
garantindo uma grana alta para a reeleição de quem está lá. A campanha
presidencial, pelo menos até o momento, passa ao largo de grandes temas
como as mudanças climáticas e a revolução digital.
Mas
o país não se resume a lacunas ou dados negativos. Trabalhadores na
saúde, médicos e cientistas lutaram bravamente contra a pandemia.
Comunidades indígenas se organizaram, alçaram sua voz; mesmo sufocada, a
cultura seguiu produzindo. E houve solidariedade popular nos grandes
desastres.
Bolsonaro
está se isolando, mas não esteve nunca completamente só. Muitos se
surpreenderam com o apoio popular que obteve em 2018 e logo depois da
vitória. Poucos como eu se lembram da campanha do governo militar
chamada “Brasil, ame-o ou deixe-o”. A base conservadora sempre esteve
aí, mas ela se dispersa quando a economia vai mal.
O
Brasil precisa resgatar o processo democrático inaugurado pelas Diretas
Já. Não se trata de uma volta de gente que partiu ao lugar a que
pertenceu, como na canção dos Beatles. Mas de uma volta do lugar a seu
próprio eixo.
Não
enumerei aqui todos os obstáculos. Sei que pareço otimista ao dizer que
é possível, apesar de tudo, pensar em reconstrução, evitando os
descaminhos que nos trouxeram ao governo da extrema direita.
Quarenta
anos depois, é preciso tentar de novo. Li uma frase de Mark Twain que
talvez possa combater a ideia que temos da História como repetição: “Um
gato que se senta num fogão quente nunca mais se sentará num fogão
quente. Mas tampouco se sentará num fogão frio”.
Feliz Ano-Novo!
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