BLOG ORLANDO TAMBOSI
O conglomerado de canais de rádio e TV ainda é sustentado pelo público que paga uma taxa anual salgada pelo direito de assistir televisão. Vilma Gryzinski:
Imaginem
receber uma carta oficial ameaçando o destinatário de processo na
justiça e multa salgadíssima pelo crime de assistir televisão. Se não
der a mínima, corre o risco de ter um fiscal batendo na porta.
Parece
saído de uma distopia stalinista, mas acontece no Reino Unido, onde a
British Broadcasting Corporation, a legendária BBC, vive de um
licenciamento anual pago por todos os indivíduos que tiveram uma
televisão em casa.
E não é barato: 158 libras, equivalente a quase 1 280 reais por ano.
Uma
espécie de anistia para os idosos acima de 75 anos, devido à
necessidade de informação turbinada pela pandemia, foi cancelada em
junho do ano passado. E dá-lhes cartinhas para os aposentados (algumas
isenções foram mantidas).
Agora,
o governo de Boris Johnson anunciou, através da secretária da Cultura,
Nadine Dorries, que a taxa foi congelada até 2024. Em 2027, pode ser
eliminada de vez.
“Acabaram-se
os dias de idosos sendo ameaçados de prisão e oficiais de justiça
batendo nas portas. Chegou a hora de discutir e debater novas formas de
financiar, apoiar e vender o excelente conteúdo britânico”, disse a
ministra.
Será
que isso vai mesmo acontecer? Os elefantes burocráticos criados com
dinheiro fácil tendem a se transformar em fortalezas inexpugnáveis e a
BBC, com todas as distorções, ocupa um lugar único no imaginário
coletivo não só do reino como dos países que recebem as programações
feitas pelo World Service em mais de 40 idiomas. As badaladas do Big
Ben, que anunciavam os antigos programas de rádio, hoje ampliados para
todos os canais digitais, ainda ecoam simbolicamente pelo mundo.
A
BBC, um conglomerado de notícias e entretenimento em todas as
plataformas de transmissão, completará 100 anos em outubro, tendo
sobrevivido ao modelo de emissora nacional que parece tão superado (em
muitos outros países, o estado ainda banca as diferentes “vozes”
oficiais, mas o contribuinte não percebe que está pagando isso através
dos impostos e não de uma taxa específica).
De
emissora rigorosamente imparcial, um modelo de jornalismo equilibrado
para todo o mundo, a BBC mudou muito. O mundo está mais dividido entre
direita e esquerda tal como entendidas na era contemporânea e a
emissora, como tantas outras, pende para o lado da esquerda.
As
reações ao anúncio de Nadine Dorries refletem isso. O Guardian, leal
guardião de todos os esquerdismos, só faltou vestir luto. As publicações
mais para o outro lado em geral ficaram desconfiadas. Não acreditam que
um governo enfraquecido como o de Boris Johnson seja capaz de
implementar uma mudança tão grande – ou mesmo de sobreviver até ela.
Muitos
veem, não sem alguma razão, uma vingancinha política do
primeiro-ministro, cuja cabeça é pedida veementemente pela BBC, com
especial gosto agora que o “partygate”, as happy hours feitas na sede do
governo durante o confinamento, apresenta uma chance real de que seu
próprio Partido Conservador se insurja contra ele.
O
pendor politicamente correto e anticonservador, fora as nada
disfarçadas flechadas contra Israel, já fez a BBC ser apelidada de
Al-BBzeera, uma brincadeira com a Al Jazeera.
Os
embates entre a BBC e políticos conservadores remontam à sua própria
criação. O primeiro diretor-geral, John Reith, tinha pavor de Winston
Churchill – no que era amplamente correspondido.
A
antipatia durou a vida toda e, depois da guerra, Reith chegou a dizer
sobre o papel titânico de Churchill na resistência ao nazismo: “Outros
teriam feito melhor e mais barato”.
Churchill
nunca disse efetivamente que se a BBC cobrisse a luta de São Jorge
contra o dragão, torceria pelo dragão, mas, além de um discurso
parodiando como seria a mitológica luta em termos modernizados, fez uma
comparação nessa linha a respeito da greve geral de 1926, quando era
ministro das Finanças: Reith “comportava-se imparcialmente em relação
aos grevistas e à nação. Eu disse que ele não tinha direito de ser
imparcial em relação ao incêndio e aos bombeiros. A nação estava sendo
chantageada”.
As
críticas da direita à BBC aumentaram depois do Brexit, um tema em que a
cortina da imparcialidade se esgarçou de vez. A cara de velório dos
apresentadores depois da vitória por quase 52% da saída da União
Europeia praticamente resumiu tudo. Além de tomar nada disfarçado
partido, a BBC também estava despreparada para cobrir um resultado que
dava por impossível.
Em
seus piores momentos, a BBC vive na bolha, como tantas outras
instituições jornalísticas: todos seus integrantes são de classe média,
estudaram em bons colégios e pensam da mesma forma. Um alienígena lhes
causaria menos desconcerto do que um inglês de cidade pequena que vota
no Brexit e em Boris Johnson (este, em retração até nesse público).
Em
seus melhores momentos, os programas sobre história, arte, ciência e
natureza são praticamente imbatíveis. O entretenimento também tem
criações brilhantes, muitas vezes reformatadas no mercado americano.
Dança dos Famosos, na versão brasileira, é um programa original do BBC
Studios, o braço comercial do conglomerado.
“Inevitavelmente,
se você não tem 285 milhões de libras, vai ter menos programas e menos
serviços”, queixou-se o diretor-geral Tim Davie, referindo-se à projeção
do rombo que o congelamento da taxa provocará.
Jornalismo
custa caro e a perspectiva de uma BBC desdentada é triste em qualquer
ponto do espectro político em que alguém se situe. Mas viver em um
universo paralelo em que opiniões dissidentes soem como blasfêmia e
sejam simplesmente ignoradas não é bom para nenhuma instituição
jornalística.
Em
2020, a Corporation, como dizem os íntimos, reduziu os salários de
estrelas como o ex-jogador Gary Lineker, que tem um programa de futebol,
e da apresentadora Zoe Ball. A folha salarial para os “talentos” foi
cortada em 10%.
A
crise do corte de financiamento coincide com outra, muito maior, que é a
concorrência avassaladora das redes sociais, o que não encerra uma
questão permanente: quando um vulcão explode no fundo do mar em Tonga
(ou qualquer outro acontecimento telúrico), você confia mais na
informação do Facebook, do Instagram ou da BBC?
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