A China mostra como o fanatismo na saúde pública pode se tornar perigoso. Brendan O'Neill para a Spiked, com tradução para a Oeste:
Imagine
uma nação em tamanho estado de sofrimento que seus cidadãos foram
reduzidos a fazer escambo de alimentos. Uma nação em que as mulheres
estavam tão desesperadas para ter algo para cozinhar que começaram a
trocar absorventes por vegetais. Uma nação em que famílias estavam com
tanta fome que trocavam cigarros por repolho. Esse país na verdade
existe. E não é uma das nações pobres, às vezes famintas, do sul global.
É a China. Mais precisamente, a China sob a política da “covid zero”.
Se você quiser ser testemunha do inferno da “covid zero”, a insanidade
distópica de submeter todos os aspectos da vida à cruzada contra o
coronavírus, basta olhar para o país onde o vírus surgiu.
O
escambo por comida e outros itens básicos está ocorrendo na cidade de
Xi’an, noroeste da China. Houve um aumento de infecções por covid-19 na
comunidade de Xi’an, e as autoridades reagiram com um feroz
autoritarismo. Em 23 de dezembro, 13 milhões de pessoas foram confinadas
em casa. Inicialmente, elas só podiam sair a cada dois dias para
comprar alimentos, mas até mesmo esse vestígio mínimo de liberdade foi
eliminado em 27 de dezembro. A partir de então, a população de Xi’an
ficou literalmente em prisão domiciliar. Eles não podiam sair de seu
local de residência por nenhum motivo, nem mesmo para comprar comida.
Sim, 13 milhões de pessoas confinadas em casa. Se colocassem o pé para
fora, corriam o risco de ser presas.
Para
lidar com a questão bastante séria de que as pessoas ficariam muito
doentes se não se alimentassem, as autoridades de Xi’an organizaram a
entrega de itens essenciais na porta dos cidadãos. Os residentes
reclamaram de não receber alimentos suficientes. Outros disseram que não
receberam nenhum auxílio. Eles recorreram à rede social Weibo para
compartilhar imagens e vídeos de si mesmos trocando gêneros
alimentícios. Em um clipe, um homem desesperado oferece um console de
Nintendo em troca de macarrão instantâneo e pães cozidos no vapor. Outro
oferece detergente para louça em troca de maçãs. As pessoas “não têm
mais o suficiente para comer”, contou um morador de Xi’an à Rádio Free
Asia. Outro disse que Xi’an vive um “retorno à sociedade primitiva”.
Não
é apenas Xi’an que está sofrendo sob a opressão da “covid zero”. O 1,2
milhão de residentes da cidade de Yuzhou, na Província de Henan, foram
colocados em lockdown depois que três infecções por covid-19 foram
descobertas. Infecções assintomáticas, aliás. As regras são severas.
Todo o transporte público foi suspenso. Foi proibido dirigir. Todas as
escolas, todos os comércios e espaços de entretenimento foram fechados.
Por sorte, diferentemente dos cidadãos cativos de Xi’an, os moradores de
Yuzhou puderam ir a lojas que forneçam “itens da vida cotidiana”. Isto
é, eles tinham permissão para comprar comida. E só. Sob a “covid zero”,
você pode comer, e nada mais. Você pode sustentar seu corpo, mas todos
os outros aspectos da vida humana — educação, socialização, lazer,
trabalho, protesto — são negados. Tudo está implacavelmente subordinado à
saúde pública. A vida está despida de todas as coisas que a fazem valer
a pena; apenas a preservação corporal é permitida.
E
pobres dos cidadãos chineses que se manifestarem contra a tirania da
“covid zero”. Em uma assustadora repetição da era maoísta, a humilhação
pública voltou. Surgiram imagens da polícia na cidade de Jingxi, no sul
da China, desfilando com supostos criminosos da covid pelas ruas. Quatro
pessoas em trajes de proteção e máscaras foram conduzidas em marcha por
policiais por uma área da cidade, enquanto os demais observavam. Todos
os quatro tinham cartazes pendurados no pescoço com seu nome e uma foto
de seu rosto. Sua suposta infração foi ajudar pessoas a atravessar a
fronteira da China — o crime mais grave no país da “covid zero”. O
objetivo dessa humilhação, nas palavras da CNN, era conscientizar sobre
“crimes ligados à fronteira” e encorajar “a conformidade da população
com a prevenção à epidemia e as medidas de controle”. Talvez sair de
casa para participar em sessões de “Dois Minutos de Ódio” contra
criminosos da covid logo seja permitido em Xi’an? Qualquer espécie de
alívio para os nove dias sombrios em que a população local ficou
confinada com certeza será bem-vinda. (Ver vídeo no Twitter).
De
alguma forma, essas restrições implacáveis e misantropas são
exclusividade da China. Claro, trata-se de um país autoritário — a
maioria de seus governantes tem poucos escrúpulos de privar as pessoas
de suas liberdades mais básicas. Além disso, o Partido Comunista Chinês
tem sua reputação a zelar. Como o jornal britânico The Guardian relata,
pelos últimos 20 e tantos meses, a mídia estatal chinesa tem
impulsionado a mensagem de que a disseminação da covid-19 em outros
países se deve a uma “liderança fraca e às más decisões”. Abandonar a
“covid zero” agora, e permitir a infecção da comunidade, ameaçaria a
posição do presidente Xi e de sua administração. O mais preocupante de
tudo, exatamente como resultado das políticas da “covid zero” — e também
do fato de que suas vacinas não são tão eficazes quanto as produzidas
no Ocidente —, a população da China tem baixo nível de imunidade contra a
covid-19. Essa é a armadilha da “covid zero”, como a Austrália e a Nova
Zelândia descobriram: no processo de proteger seus cidadãos contra a
infecção, que é a justificativa dessas políticas de intolerância, você
prejudica a capacidade biológica das pessoas de lidar com a covid quando
ela inevitavelmente aparecer.
Mas,
em outro sentido muito importante, a “covid zero” não é só uma “coisa
chinesa”. Não, aqui no mundo ocidental supostamente livre, diversos
especialistas e observadores fizeram lobby abertamente por políticas de
“covid zero”, pela submissão da liberdade e das alegrias da vida a um
programa para garantir que a covid-19 nunca mais se instale na nossa
sociedade. No último ano, a “covid zero” se tornou um pouco como o
slogan do movimento “Defund the Police” (ou “Cortem o Orçamento da
Polícia”, em tradução livre), em que as pessoas que fizeram essa
reivindicação agora negam que de fato fosse isso que estivessem pedindo.
Assim como os apoiadores do “Black Lives Matter” (“Vidas Negras
Importam”), na mídia dizem que “Não queríamos acabar com os recursos da
polícia de verdade, você só não entendeu as nuances do nosso
posicionamento”, os lobistas da “covid zero” no Reino Unido e em outros
locais insistem que, na realidade, não queriam impor restrições tão
severas para que os casos de covid fossem reduzidos a zero. Mas o fato é
que queriam, sim.
Aliás,
vale lembrar que diversos especialistas britânicos elogiaram a reação
assustadora da China à covid-19. O professor Neil Ferguson, do Imperial
College London, afirmou que seus colegas e ele nunca acharam que
poderiam “chegar tão longe” quanto às implacáveis políticas que a China
impôs no início de 2020. “E então a Itália o fez. E nós nos demos conta
de que podíamos fazer também”, disse Ferguson. A professora Christina
Pagel, a onipresente fatalista, murmurou que a China está “levando sua
abordagem para a covid muito a sério”, quando foi revelado que os
chineses tinham construído um centro de quarentena de 5 mil quartos para
aqueles que chegavam do exterior. “A China tem um sistema coletivo e
socialista… não uma sociedade individualista, voltada para o consumo e
movida pelo lucro muito prejudicada pelos últimos 20 anos de políticas
econômicas neoliberais”, a professora Susan Michie tuitou em março de
2020. Para reforçar sua mensagem, ela incluiu a hashtag #LearnLessons
(#AprendamAsLições, em tradução livre). Ou seja, o Reino Unido deveria
aprender com a China. Michie é uma das conselheiras do Sage — o grupo de
cientistas que está prestando consultoria para o governo britânico
durante a crise da covid-19. Qualquer um que duvide de que a liberdade
está em situação precária só precisa considerar o fato de que uma fã do
“sistema” chinês tem aconselhado o governo inglês no decorrer dessa
terrível pandemia.
A
verdade é: se tivéssemos seguido as recomendações dos fanáticos
britânicos da “covid zero”, estaríamos em uma situação semelhante à da
China agora. Teríamos aceitado que nada é mais importante que evitar a
infecção do novo coronavírus. Teríamos reorganizado a sociedade de tal
forma que a saúde fosse preservada em detrimento da vida — em detrimento
da educação, da interação humana, do direito de andar do lado de fora
da sua porta. Fizemos isso por alguns períodos, claro, durante diversos
lockdowns. E gerações futuras com certeza vão olhar para trás e se
perguntar por que nós, no Ocidente supostamente liberal, copiamos, por
franca admissão de Ferguson, as políticas do Partido Comunista Chinês.
Mas, por ora, enquanto lemos sobre os apuros desesperadores em que as
boas pessoas de Xi’an se encontram, vamos lembrar que temos nossos
próprios fanáticos da “covid zero”, e que suas políticas tresloucadas
teriam nos colocado em uma situação similarmente distópica. Isso me
assusta mais do que a covid-19 em si. Devolver a liberdade a seu devido
lugar — como a característica mais importante da nossa sociedade — será a
principal tarefa de 2022.
Brendan O’Neill é o repórter-chefe de política da Spiked e apresentador do podcast The Brendan O’Neill Show.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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